terça-feira, 23 de julho de 2013

Retalhos de vida infanto-juvenis

As primeiras imagens, as primeiras impressões que arquivamos na nossa memória ainda imaculada dos primeiros anos da vida são esculpidas a escopro como que em puro granito. Assim como as águas passantes do rio vão polindo os seus godos também o tempo lhe suaviza as arestas; mas apesar de ligeiramente alteradas, o essencial fica lá. Se reolhadas a certa distância é sempre possível ver-se-lhe os contornos com nitidez e retocá-las ou mesmo restaurá-las.

No final da década de '50, tinha eu 7/8 anos, frequentava a escola primária local como os demais miúdos da região.
Não havia, como hoje, a boa preocupação pela ocupação dos tempos livres das crianças, pelo que os rapazes se entretinham a jogar à bola feita de trapos, a deitar o pião, a correr atrás do arco empurrado pela gancheta e às inevitáveis lutas entre eles; as raparigas na sua escola - sim digo bem, na sua escola, pois era proibido a mistura com os rapazes -, brincavam a saltar à corda, à macaca, ao lencinho cai cai e cantavam as 'pombinhas da Catrina'. Eram divertimentos simples, ingénuos, mas alegres e entusiasmavam-nos.
Éramos felizes assim.
Era o tempo de rescaldo da II Guerra Mundial (50 milhões de mortos, recorde-se) e o mundo, Portugal incluído, tentavam soerguer-se a pulso de entre os seus escombros.
Viviam-se tempos de desumana pobreza e até miséria nacionais em geral. Minha escola tentava suprir algumas dessas carências mais básicas fornecendo gratuitamente a todos os meninos i) ao meio da manhã uma caneca de leite quente (em pó) e um pão (um trigo, assim chamado) com queijo; ii) ao almoço era servida uma tigela de sopa também quente aos mais necessitados; os outros deviam trazer o farnel de casa. (Pessoalmente e depois da minha mãe ter falado em particular com uma empregada da cantina sua conhecida (D. Felisbertinha), também lá comia a sopa, levando de casa apenas o pão-broa).
Não sei qual a qualidade do queijo que era fornecido, sei que tinha uma cor assalmonada e um paladar muito bom que ainda hoje, quando tropeço nesse sabor, a memória traz ao de cima de imediato aqueles tempos. O trigo era igualmente bom.
Distribuíam também o óleo de fígado de bacalhau, que nunca tomei mas, dizia quem o tomava (a isso era obrigado), que era ingerível, tão desagradável era sua textura e sabor. Acredito.
Morava na zona um benfeitor já de certa idade (numa casa que é hoje de um familiar, o meu primo Gabriel), conhecido por Sr. Capitão Saavedra, por todos admirado e respeitado, pois pagava do seu próprio bolso parte desta alimentação.
Reconhecidos e agradecidos, todos os alunos e demais população estiveram presentes no seu funeral. 
A título não sei bem de quê mas admito que inserido na propaganda colonial salazarista, chegou lá um exibidor de filmes ambulante.
A rapaziada da escola foi toda 'convidada' a assistir à sua projeção na sala de teatro local. Fui, claro, sem saber de todo o que se iria passar.
O que seria um 'filme'!?
Era a primeira vez que tal acontecia na minha ainda curta vida!

Lembro aqui que a televisão chegou a Portugal em 1957 e que a população em geral, por razões financeiras, só teve acesso a ela bastante mais tarde.

Já sentado na cadeira olhava para todos os lados tentando absorver a sucessão dos acontecimentos e também antecipar quanto possível do que seria um 'filme'.
Luzes apagadas, silêncio na plateia e olhos fixos na tela, aguardava curioso e algo ansioso.

Ao ouvir lá atrás o ruído de arranque da máquina projetor, todos se viraram para lá, como que fazendo a onda, de onde viram sair um raio cónico de intensa luz em direção ao palco. Ninguém estava disposto a perder também essas pitadas de novidade.

Fazendo uma onda contrária, todas as cabeças retornaram para a tela onde apareceram pessoas a mexer, a dançar e, pasme-se, pretas! Não, não estou a falar do cinema a preto e branco! Refiro-me às pessoas mesmo: eram pretas! Como era possível existirem e estar a ver pessoas de pele preta e a dançar suas danças tão diferentes do nosso folclore e a tocar instrumentos tão estranhos!? E quase nuas!, apenas uma tanga de palha lhes cobria as partes. Era demais para uma primeira vez. A rapaziada nem sabia bem como reagir ou o que pensar. Atónitos e incrédulos uns riam, outros sorriam, outros explodiam, não sei se de contentamento (vamos admitir que sim). A algazarra instalou-se.
Foi um acontecimento e peras!, para mais tarde recordar.
Foi também neste mesmo salão que vi pela primeira vez a Arte de Talma.
Dinamizado pelo ativo pároco da freguesia de Veade, padre Joaquim, foi levado à cena um teatro concebido e executado por ele e pelos escuteiros.
Um teatro!
Que bonito que foi!
Depois das luzes da sala apagadas e as pessoas isoladas no escuro entregues cada qual a si própria, as de boca de cena iluminaram o palco. As pancadas de Moliere impuseram o silêncio e os atores e atrizes (pessoas locais) começaram a aparecer aureolados pelos holofotes. Os atores começaram a debitar os divertidos textos e a assistência começou a aderir entusiasticamente.
Era a primeira vez que entrava nesta magia.
Até então conhecia apenas a das histórias que o meu pai contava à lareira nas longas e frias noites de inverno. Mas esta era diferente porque vinha de fora; era um teatro a ‘sério’, numa sala de espetáculos autêntica. Teve grande impacto em mim.
O teatro fazia um mix com o musical, e não mais esqueci a canção napolitana que lá foi cantada: 'Torna a Surriento' (com letra adaptada) e a sua interprete, a Dorzinha do maçorra. Quando mais tarde a ouvia saída dos pulmões colossais de Pavaroti, a minha memória linkava até àquela época e a cena repetia-se nostalgicamente.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

"Dentro do Segredo", de José Luís Peixoto

“Uma Viagem na Coreia do Norte”

Comecemos pela forma:
Linguagem rugosa, com arestas, literáriamente menos cuidada, escrita como que aos soluços, ao correr da pena, como quem fala.
É o seu estilo. Embora prefira outros, é mais um, o seu: nada contra.

E agora o conteúdo:
Todavia bem capaz de transmitir o que pretende, e acrescento, com um realismo iluminado, tocante e incómodo.
Retrato do país bem pormenorizado e conseguido em que se fica com a ideia bem clara da teia dos 'esquemas' instalados, todos laboratorialmente preparados e cirurgicamente implementados, visando o controlo total e absoluto de todo e qualquer movimento das populações, por muito irrelevante que possa parecer. Antecipam os seus comportamentos enclausurando-as em túneis pré-preparados.
Os requintes de malvadez com que preparam os cenários anti-americanos, anti-exterior, anti-ocidental, atingem o inimaginável: vale tudo!
A arte da dissimulação é levada ao extremo: tudo é falso.
Vivem 'orgulhosamente sós' (expressão de má memória para os portugueses), penosa e pobremente sós, dramaticamente sós, desconhecendo os direitos humanos consagrados e os efeitos benéficos das tecnologias - velhas e novas - que tornam a vida das pessoas mais fáceis e agradáveis.

Em cada palavra, em cada frase, JLP perpassa desprezo, sarcasmo e repulsa por tudo o que vê, exceção apenas para quando observa o comportamento inocente das crianças, sensível a elas por se lembrar dos próprios filhos e exceção também para a vida triste das pessoas comuns, de posturas apáticas, melancólicas; como zombies.

Admito que para aqueles cidadãos, vivendo desde há muitas gerações em dependências tuteladas - outrora por colonizadores e agora pelo regime -, completamente isolados do exterior -, não lhes seja possível ambicionar e consequentemente lutar por um outro regime alternativo, porque desconhecido.
Se visto com olhos ocidentais, de pessoas livres, torna-se irrespirável e execrável a sua existência e a sua continuidade.
É com profunda tristeza que se olha para o modus vivendi destas pessoas e revolta visceral para com os seus dirigentes.

Depois de uma visita recente a Cuba onde o regime é similar a este, diferente apenas por, no mínimo, lá chegarem outras influências principalmente através do turismo, deixei então aqui mesmo neste blog as minhas impressões pessoais. Aí ficou claro o meu desprezo e repulsa por estes regimes e pena das pessoas que no caso, sabendo, não foram ainda capazes de o mudar, embora lutando.
Não é justo nem aceitável o que por aí acontece. Para o proveito de uns tantos, muitos outros, a maioria, sofre!
Ainda bem que pelo menos o clima é quente mitigando de alguma forma o dia-a-dia das pessoas.

Há 24 anos atrás tive a oportunidade de visitar dois países do leste europeu, os agora República Checa e a Eslováquia. Ressalvando o facto de então estarem já muito próximos do fim da era comunista - 1989 - o certo é que o que então aí observei estava muito próximo também do que neste livro é descrito. A diferença estava no facto de existir turismo e o contato com as gentes do ocidente lhes ter mostrado a existência de alternativas, influência que os Norte-Coreanos ainda não sentiram. Até um dia...
Poucos meses depois cairia o muro de Berlim e a ditadura comunista.

Não sei se Thomas Cook quando em meado século XIX iniciou o turismo em grupo, turismo de massas, a que chamarei 'migrações temporárias', sabia do impacto que tais migrações iriam provocar nas sociedades até então comodamente instaladas.
Esta técnica do Cavalo da Troia replicada no século XIX resultou em pleno. Teve o grande mérito de acordar as sociedades e obrigá-las a sair das suas trincheiras enferrujadas, onde dormitavam há séculos. A partir daí, muitas vezes excessivamente lentas, começaram a mudar. Ainda hoje.
Viajar é a oportunidade de sair do casulo e refrescar a mente com novos ares, influenciando o visitante e o visitado.

O fim da URSS e logo a seguir o fecho da torneira financeira chinesa, significou o fim dos seus únicos financiadores. Isso traduziu-se em miséria e fome, muita fome, para aquele povo. Calcula-se que tenham morrido de fome 3.000.000 de pessoas.

Estamos nós também portugueses e não só a viver um mau período da nossa história; mas quando tudo falha ainda ficam as organizações internacionais a que pertencemos que, mesmo a preços altos, nos vão dando ajuda.

Estou certo de que, se o pedissem, o FMI nomeadamente, também lhes emprestaria dinheiro, embora caro. Só que não o pedirão, pois uma das condições seria a redução drástica da entourage que suporta aquela pirâmide do poder, ou seja Forças Armadas e Militarizadas, que levam a grande fatia das verbas disponíveis. E isso significaria o fim do regime.

Estes regimes configuram crimes internacionais, transfronteiriços, de lesa pátria e, mais que isso, de lesa cidadãos que deveriam ser abolidos por organizações tipo ONU, TPI ou outros.

Embora não tendo sido apanhado de surpresa por esta incómoda narrativa, confesso que os pormenores me exasperaram muito. A democracia não é perfeita, longe disso, mas as ditaduras são incomensuravelmente piores. Dizia alguém: "a democracia é o pior dos regimes, depois de todos os outros". Em democracia as pessoas para além de livres, participam - cada um à sua maneira - na condução dos destinos do país, sentindo-o como seu.

JLP saiu de lá submerso no pesadelo acabado de viver e com a sua alma de poeta gravemente arranhada. Voou logo que pôde rumo à Liberdade de Nova Iorque, levando consigo todos os seus, tentando assim lavar a própria alma destroçada e servir à família em bandeja dourada o ar puro de um país livre.
Induz no leitor esses sentimentos e a decisão clara de jamais visitar a Coreia do Norte.

terça-feira, 9 de julho de 2013

"Dentro do Segredo", de José Luís Peixoto

Uma Viagem na Coreia do Norte
"Após o bombardeamento de Hiroxima e de Nagasáqui, o Japão rendeu-se aos aliados em Agosto de 1945 e, nesse mesmo momento, terminou o seu domínio sobre a Correia. No mês seguinte, as tropas americanas chegaram ao sul da península. O exército soviético, acompanhado por grupos comunistas coreanos, estava já em algumas áreas do norte. Numa reunião de emergência, com vista a determinar estejas de influência, o coronel americano Dean Rusk porpôs ao general soviético Chischakov a criação de uma fronteira no paralelo 38. Essa passou a ser a linha de divisão entre a Coreia do Sul e do Norte"

"Actualmente, a Coreia do Norte é o país mais militarizado do mundo. Com vinte e quatro milhões de habitantes, tem o quarto maior exército do mundo, com mais de um milhão e cem mil soldados armados, cerca de vinte por cento de todos os homens entre os dezassete e os cinquenta e quarto anos do país. Em caso de necessidade, conta com uma reserva operacional de quase oito milhões de homens. O serviço militar é obrigatório para todas as pessoas que estejam aptas fisicamente e dura um período máximo de dez anos"

"Ainda no final dos anos oitenta, a União Soviética exigiu a devolução de empréstimos que o Coreia não tinha possibilidades de pagar. Em 1991, com o fim da União Soviética, a ajuda terminou abruptamente e a agricultura norte-coreana não foi capaz de produzir os alimentos necessários para o país. Durante algum tempo dependeram da China, que, em 1993, garantia 68% da alimentação e 77% de todos os combustíveis consumidos na Coreia do Norte. Logo depois, ainda nesse ano, quando a China teve dificuldades, a ajuda foi cortada de modo radical"

"... as (cheias) de 1995 destruíram toda a produção agrícola e 85% da produção hidroeléctrica do país"

"... o número de mortos ligados à grande fome oscila entre os duzentos e quarenta mil (dados Norte-Coreanos) e os três milhões e quinhentos mil (dados internacionais)"

“Entrei em algumas salas, que tinham sempre as fotografias dos líderes. Entrei também no laboratório, onde não faltavam as cobras em frascos e os animais embalsamados, entre os quais um tigre com ar ameaçador mas com a cabeça achatada, deficiente.Também estive na sala da disciplina da História das Actividades Revolucionárias de Kim Jong-il: as paredes cobertas pela sua cronologia. A sala da disciplina de História das Actividades Revolucionárias de Kim Jong-il era parecida. Estava em silêncio, a fazer mentalmente essa constatação, quando uma rajada súbita de vento abriu a janela com toda a força. De repente, o caos. Para além do barulho, as cortinas estenderam-se a dar corpo ao vento e explodiram papéis no ar, eram as folhas de pequenos dossiês que estavam a meio das secretárias, partilhadas durante anos pelos alunos que ali se sentavam.A professora preocupada, a fechar a janela e, depois, a recolher todos os papéis do chão”

O inconformismo, o desconforto e a ambição de liberdade para aquelas gentes provoca em JLP alucinações como as descritas neste parágrafo e aviva nele o lado poético.