As primeiras imagens, as primeiras impressões que arquivamos na nossa memória ainda imaculada dos primeiros anos da vida são esculpidas a escopro como que em puro granito. Assim como as águas passantes do rio vão polindo os seus godos também o tempo lhe suaviza as arestas; mas apesar de ligeiramente alteradas, o essencial fica lá. Se reolhadas a certa distância é sempre possível ver-se-lhe os contornos com nitidez e retocá-las ou mesmo restaurá-las.
No final da década de '50, tinha eu 7/8 anos, frequentava a escola primária local como os demais miúdos da região.
Não havia, como hoje, a boa preocupação pela ocupação dos tempos livres das crianças, pelo que os rapazes se entretinham a jogar à bola feita de trapos, a deitar o pião, a correr atrás do arco empurrado pela gancheta e às inevitáveis lutas entre eles; as raparigas na sua escola - sim digo bem, na sua escola, pois era proibido a mistura com os rapazes -, brincavam a saltar à corda, à macaca, ao lencinho cai cai e cantavam as 'pombinhas da Catrina'. Eram divertimentos simples, ingénuos, mas alegres e entusiasmavam-nos.
Éramos felizes assim.
Era o tempo de rescaldo da II Guerra Mundial (50 milhões de mortos, recorde-se) e o mundo, Portugal incluído, tentavam soerguer-se a pulso de entre os seus escombros.
Viviam-se tempos de desumana pobreza e até miséria nacionais em geral. Minha escola tentava suprir algumas dessas carências mais básicas fornecendo gratuitamente a todos os meninos i) ao meio da manhã uma caneca de leite quente (em pó) e um pão (um trigo, assim chamado) com queijo; ii) ao almoço era servida uma tigela de sopa também quente aos mais necessitados; os outros deviam trazer o farnel de casa. (Pessoalmente e depois da minha mãe ter falado em particular com uma empregada da cantina sua conhecida (D. Felisbertinha), também lá comia a sopa, levando de casa apenas o pão-broa).
Não sei qual a qualidade do queijo que era fornecido, sei que tinha uma cor assalmonada e um paladar muito bom que ainda hoje, quando tropeço nesse sabor, a memória traz ao de cima de imediato aqueles tempos. O trigo era igualmente bom.
Distribuíam também o óleo de fígado de bacalhau, que nunca tomei mas, dizia quem o tomava (a isso era obrigado), que era ingerível, tão desagradável era sua textura e sabor. Acredito.
Morava na zona um benfeitor já de certa idade (numa casa que é hoje de um familiar, o meu primo Gabriel), conhecido por Sr. Capitão Saavedra, por todos admirado e respeitado, pois pagava do seu próprio bolso parte desta alimentação.
Reconhecidos e agradecidos, todos os alunos e demais população estiveram presentes no seu funeral.
A título não sei bem de quê mas admito que inserido na propaganda colonial salazarista, chegou lá um exibidor de filmes ambulante.
A rapaziada da escola foi toda 'convidada' a assistir à sua projeção na sala de teatro local. Fui, claro, sem saber de todo o que se iria passar.
O que seria um 'filme'!?
Era a primeira vez que tal acontecia na minha ainda curta vida!
Lembro aqui que a televisão chegou a Portugal em 1957 e que a população em geral, por razões financeiras, só teve acesso a ela bastante mais tarde.
Já sentado na cadeira olhava para todos os lados tentando absorver a sucessão dos acontecimentos e também antecipar quanto possível do que seria um 'filme'.
Luzes apagadas, silêncio na plateia e olhos fixos na tela, aguardava curioso e algo ansioso.
Ao ouvir lá atrás o ruído de arranque da máquina projetor, todos se viraram para lá, como que fazendo a onda, de onde viram sair um raio cónico de intensa luz em direção ao palco. Ninguém estava disposto a perder também essas pitadas de novidade.
Fazendo uma onda contrária, todas as cabeças retornaram para a tela onde apareceram pessoas a mexer, a dançar e, pasme-se, pretas! Não, não estou a falar do cinema a preto e branco! Refiro-me às pessoas mesmo: eram pretas! Como era possível existirem e estar a ver pessoas de pele preta e a dançar suas danças tão diferentes do nosso folclore e a tocar instrumentos tão estranhos!? E quase nuas!, apenas uma tanga de palha lhes cobria as partes. Era demais para uma primeira vez. A rapaziada nem sabia bem como reagir ou o que pensar. Atónitos e incrédulos uns riam, outros sorriam, outros explodiam, não sei se de contentamento (vamos admitir que sim). A algazarra instalou-se.
Foi também neste mesmo salão que vi pela primeira vez a Arte de Talma.
Dinamizado pelo ativo pároco da freguesia de Veade, padre Joaquim, foi levado à cena um teatro concebido e executado por ele e pelos escuteiros.
Um teatro!
Que bonito que foi!
Depois das luzes da sala apagadas e as pessoas isoladas no escuro entregues cada qual a si própria, as de boca de cena iluminaram o palco. As pancadas de Moliere impuseram o silêncio e os atores e atrizes (pessoas locais) começaram a aparecer aureolados pelos holofotes. Os atores começaram a debitar os divertidos textos e a assistência começou a aderir entusiasticamente.
Era a primeira vez que entrava nesta magia.
Até então conhecia apenas a das histórias que o meu pai contava à lareira nas longas e frias noites de inverno. Mas esta era diferente porque vinha de fora; era um teatro a ‘sério’, numa sala de espetáculos autêntica. Teve grande impacto em mim.
O teatro fazia um mix com o musical, e não mais esqueci a canção napolitana que lá foi cantada: 'Torna a Surriento' (com letra adaptada) e a sua interprete, a Dorzinha do maçorra. Quando mais tarde a ouvia saída dos pulmões colossais de Pavaroti, a minha memória linkava até àquela época e a cena repetia-se nostalgicamente.