12/18 Dez '21
Não, não encontrei o Pai Natal! Em boa verdade, também não o procurei. Tivesse eu feito esta viagem há alguns anos e tê-lo-ia abraçado com todo o entusiasmo da criança que na altura havia em mim. Ai dele que, então, não aparecesse.
Sendo certo que nunca o abandonei totalmente. Fomos grandes amigos e ainda somos. Fui, entretanto, crescendo a seu lado e metamorfoseando-me contra ele, aceitando boamente suas visitas de companheiro sazonal. Aproveitamos esses encontros para afinarmos nosso relacionamento, nem sempre muito regular - queixa-se ele.
Conservo dele, contudo, uma bonita ideia. Hoje, é um bom amigo que revejo quando visita meus netos e, antes, sempre que visitava minha filha. Na sua noite, espero sempre por ele e, mal chega, abro-lhe a porta até trás para o receber como deve ser: de braços abertos, a escutar o seu inconfundível Oh! Oh! Oh!. Seu sorriso, sua alegria, sua boa disposição, são os melhores presentes que traz no seu grande saco. Que aceito e redistribuo com gosto.
Noutro tempo, no meu primeiro tempo, preocupava-se em alegrar e adoçar o melhor que podia os dias da visita. E conseguia. Trazia sempre o saco bem cheio, tão cheio como agora, apenas com surpresas diferentes e distribuições mais escassas; bastante mais escassas, aliás. Parece ter guardado as melhores prendas para mais tarde. Agora, sim, tem mãos largas. Trás o saco bem cheio, com muito de tudo, que distribui fartamente. Tem vezes que até exagera!
Lapónia e Pai Natal coexistem como inseparáveis siameses. Não se fala numa sem lembrar o outro. No local, na sua terra natal, visita-se uma e continua-se a falar e a procurar o outro. Com algum sucesso, o digo. Como num jogo de esconde-esconde o entusiasmo na sua procura aparece, não esmorece, anima e recrudesce, entretendo-se ele a semear sua magia por quem queira jogar o jogo. Eu joguei. E gostei.
A viagem foi ainda um tudo-nada ensombrada pela pandemia, agravada pelo número crescente e recente de atingidos um pouco por todo o lado. Felizmente que ele, o Pai Natal, está imune e com forças qb para afrontar o bicharoco.
Far-se-á a viagem? Em que surpresas tropeçaremos? A PLV e os Guias lidarão bem com os imponderáveis?
Estas interrogações que mancharam o pano de fundo que antecedeu e questionou a sua realização, não foram, ainda assim, empecilhos bastantes para a travar.
Vestidos com as capas dos cuidados em vigor e da imprescindível confiança - e reforçados pela 3ª dose da Pfizer -, aí fomos nós ao encontro do Pai Natal e da Lapónia.
A pandemia seguiu connosco; não nos largou um minuto, nem mesmo lá em cima, resguardados nas asas do grande pássaro e escondidos por trás das diversas camadas de nuvens. Mas nós barramos-lhe a entrada com os meios que levávamos no rosto e no bolso.
Fomos eficazes e mais fortes que o nefando monstrinho.
Lapónia…
Pai Natal…
Os sons do pronunciamento destes nomes ecoam pelos mais finos capilares dos tempos, e invadem o nosso com a mesma intensidade e candura com que as camadas desse mesmo tempo os foram revestindo e protegendo.
Seja por motivos comerciais, seja pela promoção da brandura humana, o certo é que o culto ao Pai Natal se generalizou. E ao consegui-lo, gerou um intervalo de Paz e Concórdia Mundial que valoriza e acalma a alma coletiva.
Lá chegados, acrescenta-se-lhes apenas a dimensão que faltava: a terceira. E que dimensão! O contacto com o real em nada ofusca o brilho do imaginário. Pelo contrário: dá-lhe consistência, corporiza-o e ainda o engrandece.
Correndo o risco de deturpar ou manchar as imagens do que vi pela falta de engenho literário, vou atrever-me, ainda assim, a uma pequena resenha.
Aldeia do Pai Natal
A parte mais impressiva, seguramente. Não só por corresponder exatamente aos postais HD que circulam pelo mundo e gravados bem no fundo da nossa memória, mas, sobretudo, por despoletar sensações visuais, musicais e climáticas (-4°, nesse dia) que acordam a alma juvenil e ameninam a adulta.
Fomos recebidos - onde a terra acaba e a neve começa - num imenso tapete de neve, com minúsculos flocos em suspensão ondulante, como quem quer ganhar tempo para poisar sem ser notado ou para melhor receber quem chega.
Encandeados por essa beleza e leveza, espontaneamente de rostos levantados, sentimos a suavidade do primeiro contacto.
Que agradável!
Tanto que o rosto permanece levantado e inerte a pedir uma paragem do tempo; as pálpebras, suavemente cerradas, fecham-se ao mundo; escuta-se o silêncio dúbio do ‘bate leve, levemente...’ (Augusto Gil); os pés encoturnados retraem-se, encolhidos pela fria temperatura exterior; o corpo, euxumaçado de camadas intermináveis de roupa quente, sente o frio a trespassar a pele e a beliscar os ossos; os braços estendem-se para sopesar o mundo e, assim abertos à natureza inclemente, pede-se mais e mais para dar tempo a que o coração e a alma se recomponham e ambos viagem sem pressas para onde livremente desejarem ir.
Ainda fascinados e sob o impacto deste primeiro deslumbramento, seguimos por ali e por ali à procura de outros êxtases, guiados pelas luzes multicolores a iluminarem o caminho atapetado de macia brancura.
Ao caminhar por entre as sebes-guias bem algodoadas de neve, deixamo-nos tocar pelo aconchegante calor humano que por ali se respira e que a todos envolve, enquanto as gentes derretem outras neves trazidas de longe.
E são tantos os pontos chamativos a saltitar à nossa frente que a cabeça tonteia ao encontro do próximo.
Lá está a fogueira de brasas vivas e chama animada a desenhar sombras curvas nas paredes das cabanas, enquanto aquecem os corpos mais carentes;
Lá está o emblemático iglo, seguro em grossas paredes de gelo, a lembrar o frio do ártico;
Lá está a rena esforçada a puxar o seu trenó cheio de crianças e adultos felizes;
Lá está a pequena ponte elevada para uma captura mais abrangente;
Lá está o fio azul que lá do alto informa do início do círculo polar ártico;
Lá está o termómetro a aconselhar mais agasalhos aos desprevenidos;
Lá está a alegria das crianças a atirarem-se leques de neve fofa e a deslizar nos trenós de ocasião;
Lá está a WebCam para saudar quem ficou longe;
Lá estão os casais enamorados a eternizarem seu amor;
Lá estão os grupos de adultos a mimosearem-se com brincadeiras infantis;
E nós os seis - Dulce, Manuel, CarlaS, CarlaG, Branca e eu -, aderimos rapidamente ao espírito que pairava,
e brincamos,
e divertimo-nos.
Entretanto, o Santa Claus, dono e senhor da sua Village, espera-nos pacientemente no recesso de sua casa.
Era grande a nossa vontade de o ver pelo que, sem mais dispersões, fomos entrando. Pelos longos corredores, escadarias e salas, por todos os cantos, caixas e caixinhas, enfeitadas e fechadas, atulhadas até ao teto, despertavam em nós a curiosidade de adivinhar que prendas esconderiam.
De caixa em caixa, chegamos à porta em que o Duende de guarda ao salão nobre se afastou para uma primeira visão do Pai Natal.
Ei-lo! Ali mesmo à nossa frente, sentado no seu confortável cadeirão, como recomenda sua vetusta idade. Vestido a rigor com o seu fato célebre - incluindo frágeis lunetas a segurar a ponta do nariz curvo e longas barbas brancas a poisar pelo regaço (alguém perguntou: serão verdadeiras? Obviamente, respondi: tudo aqui é autêntico!) -, convidou-nos a entrar com o seu esperado oh oh oh.
Respondemos em coro com o entusiasmo acumulado de anos que levávamos, acrescentado do que ele ali mesmo nos transferiu. Já próximos (separados pelo acrílico Covide-19), conversamos um pouco. Perguntou de onde éramos - ouvimo-lo pronunciar ’Porto’! e despediu-se com um surpreendente 'Bem-Vindos à Lapónia'. Despedimo-nos também, para dar vez à enorme fila. Isto, depois de olharmos de fugida para todas as caixas que enchiam a sala, na vã tentativa da descoberta da nossa prenda. Estavam, porém, convenientemente aluquetadas, pelo que tivemos de conter a ânsia e adiá-la por mais uns dias.
Ainda há quem não acredite no Pai Natal!
Ir à Aldeia do Pai Natal é voltar à meninice, para quem assim a viveu; para quem não, será a descoberta de um mundo cheio de cor, de música, de harmonia e de magia. De momentos de comunhão de um lindo sentimento humano.
Lapónia
Região que ocupa boa parte do norte da Noruega, Suécia, Finlândia e da província da Rússia, Kola, com 388 mil km². É na parte finlandesa - e só -, em Rovaniemi, que existe o culto ao Pai Natal.
Turistar pela Lapónia nesta altura do ano - solstício de inverno - é descobrir um mundo novo (para mim). Original e bem bonito.
Longe da faxa terrestre do trópico de câncer e mais ainda da faxa equatorial, ou seja dos raios solares mais quentes, a natureza reage com o que aqui tem disponível, criando um ecossistema próprio: neve, gelo e frio, com vida animal e vegetal adaptada às circunstâncias, mas abundante, apesar de tudo. Os seres humanos são mais escassos (Lapões, ou Sámi como querem ser conhecidos: 70 mil no total dos quatro países).
Usufruir do prazer de caminhar pontapeando tufos de neve fofa;
Calcorrear pela neve em raquetes por entre árvores de ramos descaídos submissos ao peso de grossos novelos brancos;
Conduzir trenós puxados por huskies frenéticos e barulhentos;
Guiar as pequenas renas mansas e pachorrentas;
Galgar em motos de neve por extensos montes alvos, por colinas iluminadas pelos compridos raios dourados do sol poente. Ou será nascente?;
Descer aos vales desertos;
Furar pelos túneis emparedados de abetos, hirtos como sentinelas;
Tomar um inesperado chuveiro de neve que nos cai das árvores;
Experimentar no rosto o vento gelado do ártico;
Perfurar o gelo grosso do lago à procura de peixe;
Boiar em água aquecida no mesmo lago com fatos térmicos;
Comer biscoitos e beber chá quente ao calor e à luz da fogueira numa cabana solitária;
Comer salsichas assadas e marshmallow aquecidos a tarde horas da noite;
Ver o sol nascer às 11:00 e ir embora às 13:30;
Sair do almoço e dar com o olhar na noite escura;
Não ver pessoas na rua;
Saber que deverão tomar a vitamina D;
Ver (bons) prédios e casas sem varandas enfeitadas com estalactites;
Pressentir as pessoas no quentinho dos seus lares;
Ver o comércio a funcionar em Shoppings aquecidos;
Ver os transportes a funcionar normalmente mas, obrigatoriamente, a ter de mudar de pneus a cada solstício;
Andar de autocarro, sempre em cima de neve, ladeados de árvores pingantes de branco;
. . .
Um encanto esta Lapónia de inverno.
“Crónicas de uma visita ao Pai. Natal”
ResponderEliminarMais uma vez uma excelente crónica literária do meu grande amigo Magalhães!..
Parabéns gostei muito