quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CATARINA DE BRAGANÇA, por Isabel Stilwell

Interessante.
Claramente uma escrita no feminino. E, se distingo o facto, é pelo simples facto - não tão simples assim - de haver menos publicações do género.

Sem pretensões a ver-se incluída na lista dos grandes novelistas - digo eu, e não me refiro à quantidade de livros vendidos ou de leitores (muitos) -, Isabel Stilwell, aborda a vida e o tempo de CdB pelo lado ficcional a que acresce algum talento para a escrita.

Os factos incluídos são do domínio público - a  simples Wikipédia os menciona -, mas reconstrói com eles uma sequência cronológica envolta numa literatura criativa, que se lê sem necessidade de grande empenho. Leitura corrida num ritmo calmo.

Com este seu cunho light, Isabel Stilwell, traz-nos para aqui esta figura histórica retocada com os usos e costumes, virtudes e defeitos de então; os enredos cochichados nas quentes e produtivas alcovas, as intrigas segredadas nos luxuosos salões e nas sombras dos longos corredores palacianos, e as políticas de alianças transnacionais que regiam as monarquias europeias, com destaque para aquelas onde Catarina viveu e/ou reinou.

Aqui e ali um pouco de exagero ao redor de Catarina, mas o essencial, sim, está cá.

A história em si, das mais recontadas entre nós - em especial a do ‘five o'clock tea’ seguida da da geleia de laranja amarga (mais a do uso de talheres, do tabaco, dos pratos de porcelana, da ópera) - não surpreende. A novidade está na forma.

[Ainda hoje se exportam para Inglaterra laranjas amargas Andaluzas (cuja produção observei recentemente na região de Sevilha | 30.000 árvores). Catarina servia esta geleia amarga às inimigas e concubinas, ficando com as doces para si e amigas]

Com sua alma feminina a olhar para a ponta da pena, apresenta a época e CdB numa roupagem sem vincos; dizendo melhor, onde há arestas - e estas décadas (1640) foram turbulentas - a narradora calça a luva da delicadeza e afaga-as. A todas.

Animado por um sorriso-surpresa que o detalhe da leitura provoca, torna-se agradável viajar por estradas de pisos suaves, floridas e rendilhadas, ao volante de uma mulher.
Há certos pormenores - nos adereços, por exemplo ou na caracterização dos personagens -, que um homem desconhece e desmerece mas enriquecem. É um mundo diferente.

O tema é ‘Catarina de Bragança’, Rainha Consorte, sabemo-lo desde a primeira página; isto é, relega outros intervenientes trazendo-a para o centro da ação.
Como um escultor dedicado, vai moldando o seu perfil com as alegrias e contrariedades  de uma Princesa/Rainha em crescimento; elege provações e provocações mais que normais por que passou, doseando-as com espontaneidades da idade, de forma a dar-lhe um carácter temperado mas resoluto para quando mais tarde dele vier a precisar. E é, segundo a escriba (e pelo que se sabe), parte da chave da sua ascensão e longevidade - 23 anos - como Rainha ‘Consorte’ de Inglaterra.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

'Volta ao Mundo', na rota de Andrew Marr

 
Andrew Marr, Jornalista, pessoa portadora de conhecimentos de história invulgarmente alargados e, mais que isso, articulados e sopesados, com um dom também raro de os transmitir (como quem conversa), propõe-se nestes seis livrinhos (tipo pocket books editados pelo Expresso) ser nosso guia numa nova incursão, a sua, pelas causas e consequências que explicam a evolução, a estagnação ou o retrocesso da história do mundo, focando-se, principalmente, nos cruzamentos mais decisivos do andamento da ‘passada’ humana.

Começa bem lá trás desde antes do mundo ser mundo, passa pelo Big Bang, pelo homem caçador-recolector, pela invenção da agricultura e vem, step by step, até aos nossos dias.

Sustenta sua exposição em evidências arqueológicas, linguísticas - com confirmações pessoais em muitos locais -, e em historiadores que respeita mas atento a todos.

Não afirma nem impõe sua visão mas fá-lo de forma tão direta, tão animada, tão informal mas simultaneamente tão catedrática que (aos menos letrados) deixa pouco espaço para a dúvida; anestesia-nos facilmente, 'perigosamente', com a lógica das suas razões e deduções.

Pega em toda a amplitude histórica até onde consegue ir (milhões de anos) - até onde existem vestígios conhecidos e analisados - e a cada passo cruza-a com os dias de hoje, com comparações ou colagens intrigantes; ou não.

Apreciei particularmente a descrição (que retive como informação) que carreou para aqui entre os séculos V e XV (fim do império romano e início dos descobrimentos) por ser um tempo que não me tinha despertado especial curiosidade - exceto para o período negro da Peste Negra - mas que de futuro acompanharei com mais atenção.

Uma escrita viva, ágil, coerente, concisa mas abrangente, com o léxico certo ao contexto; dispensa o floreado literário a favor do foco na narrativa.
E o leitor agradece.

Ajuda a recolocar os acontecimentos de hoje na linha do tempo do caminhar das sociedades.
Valoriza os ‘binóculos’ e os ‘trióculos’... com que retro-olhamos tudo o que nos envolveu (e envolve).

Dá:
Outras perspetivas, menos imediatistas e menos aceleradas;
Mais compreensão para o assentamento das suas causas e consequências;
Equidistância do frisson das notícias que poluem a espuma dos dias;
Mais, fica aumentada a noção de inclusão e pertença, de agente e de passageiro.

Sublinho a sua tão tenebrosa quanto verdadeira asserção - com demonstração milenar - de que “a seguir à guerra vem a prosperidade”!
Tal conclusão, barra, alerta, deixa qualquer um pensativo, inquieto e mal disposto; ou não.
Ao que parece é uma verdade histórica confirmada com a qual teremos de lidar.

No fim desta longa e trepidante viagem pelos quatro cantos deste nosso planeta, uma afirmação categórica posso publicitar: foi uma bela viagem, uma viagem muito vívida, por uma outra rota da história do mundo e do homem.

O último livrinho, o VI - já sobre o século XX e XXI, mais sobre os nossos tempos, os dias de hoje - tem capítulos verdadeiramente esclarecidos.

Os factos para ali selecionados resultam quase sempre:
do rolar imparável da nossa bola de neve coletiva, umas vezes;
do caimento das pedras do dominó, tantas vezes.
Raramente são fruto do acaso ou da genialidade de alguém; antes da distração ou alheamento de muitos.

A China justifica uma nota especial.
Desde sempre a China teve uma posição cimeira no pelotão mundial e por várias vezes abocanhou a camisola amarela em muitos domínios.
Mais recentemente, e depois do período negro Maoísta - lá, nessa era, morreram de fome 38 milhões de pessoas -, abriu as portas da economia ao exterior para não mais as fechar.
A expansão subsequente é galopante; a dependência mundial da sua pujante economia é preocupante.
Oxalá não se torne asfixiante!

Prevê-se que já em 2020 a economia chinesa ultrapasse a americana (hoje, a americana é quatro vezes maior que a chinesa).
A sua percentagem do PiB para o reforço do armamento militar cresce todos os anos… e é já o segundo maior orçamento mundial para este fim, depois dos EUA. A sua capacitação nuclear, militar - sobretudo aérea e naval - tem crescido exponencialmente.

Lembra Andrew Marr:
"A seguir a uma derrocada económica ainda fica dinheiro para a guerra".

Este crescimento desmesurado chinês, sim, é um problema para terceiros.
A ausência de democracia como o ocidente a entende (imprensa livre, controlo eleitoral aberto, pesos e contrapesos institucionais que a calibrem), um presidente todo-poderoso - Xi Jinping / comunista(?) - a torpedear o modus operandi mundial -, está a levar o ocidente em geral para a sua dependência e subserviência.
Até que ponto?
O ocidente ainda irá a tempo, já não direi de inverter, mas de atalhar o advento do descalabro?

Andrew Marr reserva as últimas páginas onde se esforça por libertar algumas notas de otimismo e esperança no futuro; não melhor, por não ser mais viável, mas pelo menos igual ao que temos.

Para isso, todavia, muitas e muitas ações concertadas e visionárias a nível mundial têm de ser implementadas.

Outros títulos que daria a esta mesma obra:
Sinopse da história do mundo
História do mundo concatenada
Time-Lapse da história do mundo

Copy/Paste dos livros:

«[...] a história [...] é o tédio interrompido pela guerra.»

Derek Walcott

«Escrever uma história do mundo é algo ridículo. A informação é demasiado [...] as probabilidades de erro tremendas. [...] não ter uma ideia da história do mundo é ainda mais ridículo»

Andrew Marr

«Da Yu (2.059 a.C.), rei dos Xia, China
Tornou-se rei dos Xia porque adquiriu esse direito ao organizar o povo para seu próprio benefício. [...] em geral Reis e imperadores trazem a opressão [...] grupos de operários a erguerem represas, mas avançam para muralhas fortificadas, exércitos e cobradores de impostos. [...] esta imposição de autoridade continua a ser melhor do que a desordem. [...] os monarcas são melhores do que a alternativa»
Andrew Marr

«Ninguém é suficientemente louco para optar pela guerra em lugar da paz - na paz, os filhos sepultam os pais, mas na guerra são os pais que sepultam os filhos»

Heródoto, séc V a.C.

«A história, no seu sentido convencional, é sobretudo feita fora de casa. Lá fora, os generais montam seus cavalos e os marinheiros içam o seu velame. Nas oficinas, os inventores retalham, torcem, mordem o lábio e garatujam. Na rua, pregadores vociferam e os negociantes exibem constantemente algo de novo. Contudo, a história não fica verdadeiramente feita até ser sentida dentro de casa. As grandes mudanças são as que se sente em volta da mesa de jantar, ou no leito do enfermo. Por vezes a casa fica num novo continente, arde de alto a baixo ou é abandonada. As grandes descontinuidades da vida humana, a que, tomadas no seu conjunto, chamamos «História», são aquelas que têm um impacto direto no modo como nós - a massa dos humanos - vivemos. E onde vivemos, em geral, é em casa»

Andrew Marr

«Uma vez derrubada a velha autoridade - por mais intolerável, surda à mudança, esclerosada e desprezível, raramente está disponível uma nova ordem educadamente à espera nas alas, mais racional, mais humana, mais virada para o futuro»

Andrew Marr

[O século XX] foi um século de notório e imenso paradoxo. A matança
foi maior do que nunca. Em números absolutos, ultrapassou até as dos Mongóis, todas as catástrofes epidémicas decorrentes da invasão europeia das Américas e todas as guerras precedentes. Esta matança deu-se porque houve líderes a afirmarem-se com a promessa de aperfeiçoarem radicalmente a humanidade, e poderem exercer um poder quase total. O «século mais sanguinário da história» tornou-se lugar-comum da disciplina. Contudo, é contestado, entre outros, pelo cientista Steven Pinker, que faz notar que os números terrivelmente elevados de mortes decorrem em parte dos muito maiores números de pessoas vivas: não se podem matar pessoas que não existam. Se a contagem de vítimas for ponderada pela população, os tempos modernos já não parecem tão maus. As conquistas Mongóis (já descritas), a revolta muito violenta na China do século oitavo, as conquistas de Tamerlão, a queda da antiga Roma e a derrocada final da dinastia Ming - todos estes eventos mataram proporcionalmente mais do que a Segunda Guerra Mundial.
Além disso, o nosso conhecimento da violência recente, fotografada, contabilizada, filmado e registada em diários, memórias e discursos, é mais pormenorizado e mais vívido do que o nosso conhecimento da violência da África do século XVI, por exemplo, das aldeias medievais franceses ou dos impérios da antiga Coreia. Esta «miopia histórica», defende Pinker, encoraja-nos a ver o passado com demasiada brandura e a nossa história recente com mais emoção. Por razões  especificamente históricas, com fracas probabilidades de se repetirem, o século XX assistiu a uma guerra de aniquilamento entre Alemanha de Hitler e a Rússia de Estaline que, tendo-se alargado a grande parte do mundo, terminou com recurso a armas nucleares.
Tal não significa necessariamente que as pessoas se tenham tornado mais violentas ou perversas. Na verdade, afirma Pinker, quando se contabilizam pequenas guerras, violência doméstica, violência contra crianças e a velha crueldade para com os animais, os sacrifícios religiosos, a escravatura e o crime violento, as pessoas estão pelo contrário a tornarem-se menos violentas e «melhores». O mesmo acontece em África, que tem sido particularmente atormentada por guerras nos tempos recentes. Sociedade de direito, nas quais as mulheres dispõe de mais autoridade e que estão vinculadas por tratados internacionais (e dissuadidas de desencadearem guerras tremendas com armamento nuclear), produzem estilos de vida mais afáveis. Em apoio de Pinker, o investigador norte-americano Matthew White, que cunhou o termo «atrocitologia» para explicar a sua graduação de acontecimentos mortais, chama a atenção para o facto de, ao longo do século XX, mais de 95% de todas as mortes se deverem a causas naturais.
Trata-se de um aspeto crucial, que deverá ser enfatizado desde o início. A grande maioria de nós passa a maior parte da vida no que chamo «as calmarias», esses períodos prolongados de tranquila estabilidade social. Depois, morremos de doenças na velhice. Medicina mais avançada e melhor alimentação, água mais pura e um policiamento mais eficaz promoveram um enorme aumento da esperança de vida, bem como um imenso (e insustentável) crescimento populacional; assim, também as calmarias se prolongaram por mais tempo. Para dar só um exemplo: diz-se que, sem a descoberta de Fritz Haber, em 1919, de como fixar o azoto para produzir adubo sintético, dois mil milhões de pessoas hoje vivas não estariam cá. E nalguns países que sofreram fomes medonhas - sendo a China o exemplo mais gritante -, o século XX testemunhou uma explosão de prosperidade material e oportunidades. Muito mais gente levou vidas melhores e mais pacíficas no século passado do que em algum momento anterior. A par da chacina das guerras industriais do século XX e da ameaça da guerra nuclear, temos de ter presentes os tempos bons proporcionados a centenas de milhões de pessoas que viveram a paz e a abundância numa escala sem precedente histórico, nem mesmo durante a «Paz Romana» do antigo Império. Por isso, também o melhor dos tempos.

Andrew Marr