sexta-feira, 20 de novembro de 2015

'Valeu a pena' - Outras histórias

A publicação da prosa no link acima, despertou memórias adormecidas em muita gente da família que dela teve conhecimento (FdQ, FdV, m&c) e fez ressuscitar muitas outras histórias, algumas com curiosidades interessantes que, com tempo, tentarei aqui reproduzir.
Estas três que se seguem - vagamente conhecidas por todos - foram recontadas e melhor detalhadas pela minha irmã Mª Emília. Sem as distorcer, juntando o que sabia com o que ouvi, transcrevo-as ao meu jeito.

Grávida antes do tempo
Por exemplo, o episódio, algo rocambolesco, que precedeu o casamento da tia Rosa, a mais nova dos cinco irmãos do meu pai, com o seu futuro marido, António Marinho (ambos vivos a esta data, nov./2015; os dois últimos desta geração da FdV).
Rocambolesco, disse, visto à distância, mas desesperado, senão mesmo dramático, para quem o viveu.

Vamos à história, vista do lado ligeiro, pois o tempo que sobre ela passou já lhe arredondou todas as arestas.

Como inicialmente referi, ao tentar definir o perfil do meu avô paterno enquanto pessoa, era, também, muito temperamental e, até, irascível.
Exercia a sua autoridade de chefe de família com critérios muito próprios, do género: 'quero, posso e mando', ou, 'com mão de ferro', para não dizer mais. Confrontado com factos decidia pela sua cabeça sem fundamentação cultural, tradicional ou religiosa. Era sensível, sim, aos ditames sociais em vigor na região que seguia e fazia seguir escrupulosamente.
As suas andanças por terras de África na idade militar, não contribuíram para a reestruturação pessoal, nem lhe terão aberto outros horizontes.
As suas idas a Fafe e os contactos com o seu patrão, dono da Quinta da Veiga (Dr. Juiz), não terão ajudado ao refinamento das suas ideias, já então muito enquistadas.

A minha tia Rosa era uma mulher bonita e os seus olhos azuis harmonizavam-lhe o rosto, completando um agradável conjunto. Uma típica moçoila da aldeia com 'um palminho de cara', como soía dizer-se.

Os rígidos usos e costumes da altura impunham que 19 anos traduziam uma idade muito precoce para namorar e muito mais ainda para engravidar. Mas a força incontrolada da natureza e a espontaneidade da juventude falou mais alto: engravidou.

E agora?
Como dar a notícia ao respeitado e temível pai, tendo em conta que a distância da relação entre ambos era grande, muito grande e o 'imprevisto', sabiam-no todos bem, ia contra a vontade dele?

Sem força e coragem para abordarem a questão sozinhos, pediram a intermediação da irmã Maria - mais velha e já casada com o Francisco Marinho -, por obra do acaso que o destino teceu, um irmão do António Marinho. Eram, pois, dois irmãos e duas irmãs casados entre si ou em vias disso.

Vivia o casal, Maria e Francisco, a uma légua de distância da casa do pai, no lugar da Garceira (agora pertença de familiares: do falecido primo Francisco, entre nós, carinhosamente conhecido pelo Chico do Barão) e aí 'granjeavam' uma 'lavoura'.
Combinaram, então, entre os quatro, 'convidar' o pai a fazer-se deslocar até aí para lhe comunicar a 'desdita' ocorrência, na vã esperança da obtenção da sua bênção.
Durante a 'conversa' a tia Rosa permaneceria na Veiga, na casa do pai, a aguardar notícias e o António Marinho ficaria escondido no andar de baixo (na corte do gado) para que pudesse assistir, sem provocar, ao desenrolar dos acontecimentos e intervir se fosse caso disso.

Chegado o dia aprazado, lá seguiu o meu avô rumo à Garceira para saber as novas que o aguardavam.

A tia Maria e o tio Francisco, socorrendo-se de toda a subtileza de que eram capazes, tendo em conta o melindre da situação e o génio explosivo do interlocutor, foram expondo com doçura e verdade o plano que tinham gizado para a ocasião.
Não levou muito tempo a que o meu avô percebesse da verdade da situação e daí até à explosão incontrolada, carregada de ira, cólera e ameaças de morte à sua filha Rosa, foi um ápice; em menos de um fósforo, transformou-se. Esbaforido, saiu porta fora procurando a filha, para lhe 'chegar a roupa ao pêlo'.

Nesse entretanto, o tio António Marinho que tudo escutava em baixo na 'corte do gado', não hesitou em fazer bom uso da força e agilidade da sua juventude e 'oh pernas para que te quero': desatou numa correria desenfreada até à Veiga, antecipando-se, assim, à chegada do meu avô que, enfurecido, o seguia - sem o saber - e com intenções malévolas, a que apenas a fuga atempado com a tia Rosa, sua amada, não permitiu saber quais pudessem ter sido. Mas livrou-se, concerteza, no mínimo, de uma tareia a valer.

Desconheço os pormenores subsequentes ao episódio da relação entre as partes envolvidas, apenas sei que os dois jovens casaram e tiveram uma bonita prole de quem conheço melhor a Emília, a mais velha - afinal uma das protagonistas da história - a que, por sua vez, viria a casar com o Carlos, irmão da minha cunhada Isabel, esposa do meu irmão Chico.
Confuso?
As voltas que o mundo dá...

Prenda de casamento
Depois do que tenho dito sobre o controverso perfil do meu avô paterno, e na tentativa de o enriquecer um pouco mais, olhando-o de vários ângulos, vem a propósito que aqui deixe registado, também, uma sua (rara) atitude de reconhecimento e gratidão tida para com o meu pai, faceta que vem um pouco ao arrepio do que era seu hábito.

Meu pai não chegou a cumprir o serviço militar.
Também não fui investigar a pressão que sobre esse sector existia na altura (1934) para poder avaliar melhor do grau de dificuldade em 'livrar' alguém da tropa. No meu tempo, 1972/1974, era difícil, muito difícil até porque as condições de isenção estavam vertidas em lei e a arregimentação, praticamente geral. (Pessoalmente cumpri 3 anos). 
Sei, de cor, que nesse tempo (1934) estávamos ainda no rescaldo da I Guerra e o Führer Hitler, fazia as suas aparições populistas cuja evolução viria a dar na II Guerra. A nível nacional, continuava o recrutamento para a defesa dos, então, territórios ultramarinos portugueses: Goa, Damão e Dio (Índia); Macau (China); Timor (Oceania); Guiné, Cabo Verde, Moçambique e Angola (África). (Brasil já tinha dado o seu grito de Ipiranga em 1822). 
Creio, pois, haver alguma dificuldade para isentar alguém dessa obrigação.

... e não cumpriu o serviço militar porque seu pai, precisando muito da força dos braços possantes vindos dos seus 20 anos de idade, deslocou-se a Fafe, a casa do 'respeitoso e influente, Sr. Dr. Juiz' - seu patrão e dono da Lavoura da Veiga - com um propósito claro, um 'pedido' interesseiro e um argumento acintoso: que livrasse o Avelino da tropa por precisar muito dele nos trabalhos da lavoura (da sua lavoura, dele, Juiz) .

Imagino o Dr. Juiz a mexer-se na cadeira, a bisbilhotar 'atentamente' os papéis na secretária, a acariciar o queixo, a cofiar o bigode, a voltear-se pela secretária, a teatralizar a situação, enfim, mas a saber que tudo faria para garantir aquela mão de obra para a sua propriedade.
E foi o que aconteceu: livrou o pai da tropa.

Em conclusão e por via disso também, meu pai permaneceu na Lavoura da Veiga como principal força orientadora e de trabalho até casar: aos 30 anos.

Nessa altura - 1944 - ainda a II guerra estava no auge e as populações europeias exangues com as despesas da sua manutenção; e a portuguesa, exangue também, com o esforço financeiro para a manutenção de todo o seu Ultramar.
Recomeçar uma vida a dois era, no mínimo, 'complicado'.

A região era pobre e vivia quase num regime feudal, com 'os senhores' a dominar a economia, essencialmente agrícola. Eram poucos os 'Lavradores', i.e., os detentores de terras. O dinheiro não chegava aos de baixo. A economia agrícola pouco mais era que a de subsistência. A indústria, explorava o volfrâmio para exportação. Só com enorme esforço, trabalho e muita poupança forçada havia algum dinheiro para as necessidades imediatas. Os progenitores, mesmo querendo, tinham sérias dificuldades para ajudar as novas vidas dos seus filhos.
Quem quisesse começar vida própria, tinha de o fazer por sua conta, sem alavancas. 

Os mais bem sucedidos, com algum desafogo financeiro, dominavam um modelo de negócio: 'dar gado a pensar fora'; ou seja, compravam os animais - vacas parideiras - e, em troco da criação que elas dessem, emprestavam-nas como força de trabalho a pessoas em quem confiassem, mantendo, porém, a sua titularidade. Era assim que funcionava, também, para quem quisesse começar vida nova e com carências. Muita gente da região - os caseiros, como eram chamados - viveu muitos anos, para não dizer toda a vida, neste regime.

E cheguei ao episódio que aqui queria deixar: meu avô, no tal gesto de reconhecimento e gratidão - quase magnânimo -, ofereceu ao meu pai pelo seu casamento 'uma parelha de vacas'.
Com este fermento, não sei se inesperado, começou sua vida com minha doce mãe.

Coração de Mãe
Mais uma pequena mas não menos interessante e tocante história.

Muito diferente do que acontece nos dias de hoje - suponho - era meu avô da Veiga o Vago-Mestre (para utilizar um termo militar) lá de casa, ou seja, a pessoa que administrava os víveres para toda a família.
A avaliar pelo que dele conheci ou soube não admito a hipótese de também ser ele o cozinheiro. Essa função 'menor' seria executado pela minha avó Emília, sua esposa, e com os menus que ele indicava.

A simplicidade exagerada dela ou o poder exagerado dele assim definiu o funcionamento das coisas lá em casa.

Meu tio Manuel, irmão do meu pai, o mais 'simples' dos irmãos, teve uns inícios de vida de casado difíceis. Mesmo iletrado ainda foi cumprir o serviço militar obrigatório a Angola. Depois de regressar de África e casado, as suas dificuldades em lidar com a vida aumentaram até um ponto 'complicado'.

(teve, como camarada de armas um outro meu tio, do lado da minha mãe, o tio Zé, que com ele lá esteve e ambos haviam de trazer o açúcar para o casamento dos meus pais em Dez/1944. Curiosidades.)

Um parênteses pessoal.
No meu tempo de tropa, 72/74, já não tive analfabetos portugueses na Companhia, mas havia bastantes soldados com escolas primárias muito precárias.
'Em tempo de guerra não se limpam (só) armas' e depois de reafectarmos os 150 homens às tarefas que cada um melhor sabia fazer para tornar o dia-a-dia mais funcional, recriamos uma escola primária, no quartel, para os soldados nativos, alguns desses, sim, analfabetos. Eu próprio dei as aulas e na altura certa levei-os a exame da 4ª classe, à cidade do Luso, agora renomeada Luena.
Fecho parênteses.

Retomando a história.
Já à mesa para comerem a refeição, era meu avô quem distribua as porções pelos presentes, incluindo a da minha avó que a recolhia cabisbaixa e coração distante: sorrateiramente, escondia-a debaixo da mesa para mais tarde a levar ao seu filho Manuel...
E mais não digo: Mãe.

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