segunda-feira, 27 de maio de 2013

'A CASA DOS ESPÍRITOS', de Isabel Allende

Ao ler as primeiras páginas deste livro a expressão que mais me ocorria era ‘lamechas’ ou romance ligeiro ou de cordel e, por causa dessa primeira impressão, quase desistia de o continuar a ler. Contudo e como é meu hábito, dei-lhe o benefício da dúvida até às páginas 100/120. Lá chegado dei-me conta então de que, à medida que a estrutura dos personagens e circunstâncias se iam definindo e consolidando, nomeadamente as de Esteban Trueba; o silêncio opcional de 9 anos e depois intermitentes de sua mulher Clara; os ambientes da vida dos trabalhadores da Quinta de Las Três Marias (sem quaisquer direitos) e finalmente o aparecimento de personagens revolucionárias, começou a despertar em mim outras leituras e comecei a ver o livro noutra dimensão: o que foi a vida dos países da américa latina na era pós-colonial e a tentativa de alguns – como o Chile de Salvador Allende, por exemplo – de reverter e suavizar a situação de pobreza extrema e inumana em que viviam seus povos.

Num exemplo mais conhecido e relativamente mais recente foi exatamente o que se passou, em particular em Angola: o poder exercido exclusivamente pelos antigos colonos passou, depois da independência, para as mãos de outros (poucos) senhores, agora locais, e por isso já não podem ser chamados de colonos; mas o povo continuou por longos anos ainda mais na miséria do que antes. Veremos o que o futuro lhes reserva!
O topo da antiga pirâmide do poder colonial foi decepado e belicamente substituído mas o leite e o mel continuou a não jorrar para jusante, para o povo. Os canais de irrigação descendentes continuaram bloqueados.

Põe-se aqui e pôr-se-á sempre o velho dilema, não político mas humano: em qual das situações o ‘povo’ viveria melhor: com os colonialistas ou com a independência? O futuro, mais uma vez deu e dará múltiplas respostas.

Recorda-se também aqui, por trágico, o que aconteceu e continua a acontecer no atual Zimbabwe, antiga Rodésia (Inglesa) de Iam Smith, tornado oficialmente independente em 1980. Até então, sob comando Inglês, o país chegou a ser considerado o grande celeiro africano. Robert Mugabe, governando-o desde 1981, levou o país ao caos económico e as pessoas à miséria. Com a sua popular reforma agrária distribuiu as fazendas altamente produtivas dos antigos colonos pelos locais, quebrando e destruindo com isso a cadeia produtiva e comercial do setor chave do país. O país sobrevive, ninguém sabe bem como, com uma inflação de 98%/dia e sem dinheiro!
(PIB anual: 7.000.000 USD para 12.000.000 pessoas / Portugal 230.000.000 USD para 10.000.000).

Este livro é uma tentativa literária de reexpor, reapreciar, questionar e trazer para a luz dos nossos dias, o que foi a história, (muitas vezes triste história) dos povos de toda a América Latina, e não só, nos anos pós coloniais, desde o Brasil dos Coronéis à Argentina Peronista, da Venezuela de Chaves à Colômbia dos cartéis da droga.
Deliberadamente a autora omite a identificação de qualquer desses países sul-americanos – embora todos saibamos qual o seu -, querendo com isso enquadrá-los e incluí-los a todos no mesmo cenário.

Neste romance por um lado em Esteban Trueba, com a sua truculência, seu autoritarismo, sua tenacidade e sua prepotência ilimitados temos a personificação bastante bem doseada da maneira como os Senhores plenipotenciários exerciam o seu poder discricionário (de longe o personagem mais rico, mais denso e mais emblemático do romance); por outro lado na família Garcia, em Primeiro, Segundo e Tercero, acompanhamos a evolução tímida da consciencialização cívica e política daqueles povos: da resignação tradicional e total do Avô Garcia, o mais antigo, passando pelo semi-resignado mas já mais consciencializado Segundo Garcia, até ao já revolucionário militante Tercero Garcia.
No prolongado ou entrecortado silêncio de Clara pode ler-se o silêncio dos pobres oprimidos e esquecidos, apenas chamados para os trabalhos dos senhores, sem quaisquer direitos ou vida própria.
Mesmo o todo-poderoso e inatacável Esteban Trueba haveria de sucumbir ao último dos regimes, o militar de Augusto Pinochet, ao relegar para segundo plano todos os não castristas.

Intercalo aqui um parêntesis para, no seguimento deste contexto, acrescentar um testemunho pessoal e presencial, tentando tipificar – agora já com mais isenção - o comportamento dos colonos (aviso: não tomar o todo pela parte…).
Estava eu em Angola na tropa (1972/1974), Sacassange, Luso, distrito de Moxico, e coube-me em missão, enquanto militar, dar proteção a uma frente de obra que a nossa Engenharia desenvolvia no Caminho-de-Ferro, sensivelmente a 30 Km do Luso, agora Luena. Embora destacados e acampados bem dentro da mata, de vez em quando ia à aldeia, de nome Chicala, para tomar café e conhecer os modus vivendi, usos e costumes daqueles habitantes. Afinal fazia parte das minhas funções a aproximação aos locais: ação ‘psique’, como era designada entre nós.
Havia a rua central – em terra batida – e de lá perpendicularizavam outras mais pequenas, onde se alinhavam as casas típicas das pessoas aí residentes.
Existia um café, um restaurante, uma mercearia, uma loja de roupas e calçado, e uma serração de onde saía o travejamento para os CF.
Ocorre que o dono de tudo isto era a mesma pessoa, o mesmo colono (português). Cedo me apercebi do esquema estabelecido e complacentemente permitido pelas autoridades: montar o cerco e o circo de forma que todo o dinheiro gerado na área através dos múltiplos negócios instalados lhe viesse ter às mãos!
O seu grande objetivo (o seu negócio core, como agora se diz) era o de garantir que a serração funcionasse em pleno e com isso a venda das traves já prontas para o CF e receber a ‘justa’ paga, a tempo e horas, do ‘estado’.
A maioria dos trabalhadores, quase todos, eram moradores nessa aldeia, tendo aí montadas suas vidas e onde viviam suas famílias.
Os CF, por questões de facilidades operacionais e logísticas, recrutavam aí mesmo nessa aldeia a maior parte dos trabalhadores, pagando-lhes o salário acordado.
O colono também aí recrutava e pagava aos trabalhadores para o trabalho da serração (c/ o dinheiro recebido dos CF).
Com os dinheiros oriundos dos CF e da Serração, os trabalhadores compravam os produtos de primeira necessidade justamente e só nos estabelecimentos do colono: mina de ouro para o colono que ficava com todo o dinheiro gerado. A isto se chama em letras gordas ‘colonialismo’.

A caraterização do personagem, do boneco Jean de Satigny, uma figura carismática, um cromo, está superiormente conseguido. A partir do momento em que já casado com Blanca e ‘chulando’ o sogro com uma ‘choruda’ mesada – vivendo só dela – consegue criar e explorar o seu próprio estilo de vida exuberante e supérflua; como um nababo.
Destituído de quaisquer normais princípios de vida, vivendo à custa doutrem - sogro e credores - nada o travou até atingir patamares de uma vida faustosa e opípara. Valia tudo desde que conseguisse alcançar os objetivos que almejava.
Cedo se percebeu aliás de que tipo de personagem se tratava; aí a autora semeou pistas em abundância.
A entrada em cena deste personagem não enriquece especialmente a história mas dá-lhe colorido.

Não se trata de um puro, simples ou inócuo romance, mas bem pelo contrário é recheado de quadros densamente carregados de carga político-social, obviamente influenciado pela ligação familiar e próxima que a autora tinha com Salvador Allende, que presidiu ao Chile socialista nos idos anos de 1970/1973. E admitimos que terá aceitado alguma influência e sensibilidade para este tema das desigualdades sociais que de resto tão bem descreve neste livro. Explica também a turbulência política, de séculos, vivida naquela região do globo.

A importância que é dada ao espiritismo através de Clara - questão que admito mas de que lhe desconheço os contornos ou amplitude – parece-me algo exagerado; ou talvez não se tivermos presente que o Candomblé (Orixás, Voduns ou Nkisis) ainda hoje influencia o comportamento religioso de muita gente em particular Africanos e Sul-Americanos.

Mais uma nota pessoal:
Quando andei por terras de África vivi bastante tempo junto dos nativos; no meio deles. Dava-me muito bem com eles aliás. Frequentava suas aldeias com todo o à-vontade e isso veio a facilitar aberturas bilaterais para que me pudesse aperceber também deste lado das suas vidas: do lado religioso ou transcendental. A presença do cristianismo era escassa e precariamente articulada e nada consistente o que deixava margem para a manutenção dos seus usos e costumes, incluindo o da aceitação generalizada da bruxaria como parte integrante, funcional e válida de suas vidas coletivas.
Um dia – 1973 - , enquanto militar graduado, fui chamado para instruir um processo judicial de um assassinato de uma ‘bruxa’: a aldeia tinha-se juntado e morto a dita bruxa por a sua bruxaria não se ter cumprido. No decorrer da instauração do processo de que fui encarregado (eu que tinha 20 anos de idade…) vi-me confrontado com um sério (para mim) dilema? Como encarar a questão? À luz dos conceitos ocidentais ou africanas? Sei e disso me lembro que o foi, inevitavelmente, à luz das leis ocidentais mas ainda hoje me pergunto se bem. Claro que oficialmente assim tinha de ser. Os colonos, como cruzadas da idade média, deviam difundir suas leis e religião; e eu era para todos os efeitos um representante – armado – desses colonos, desses cruzados. A questão era meramente de consciência, só minha. O meu problema de fundo era: quem dera o direito aos ocidentais de se imiscuírem nos modus videndi ou nas leis, usos e costumes daqueles povos? Porque não deixá-los viver com as suas leis? Hoje já tenho a resposta, mas isso ficará para outra altura.

Conclusão: romance interessante, com uma sequência cronológica bem delineada e conseguida e com grande domínio no uso das palavras certas e adequadas às circunstâncias. Aqui e além está um pouco exagerado mas tolera-se pela mais-valia do total da obra.

Nota:
A evolução da narrativa é em muitas páginas um copy/paste do que se passou em Portugal incluindo e principalmente na parte final, lembrando o que aqui se passou nos períodos a seguir ao 25 ABRL’74.

Com uma linguagem acessível, quase linear, todavia muito rica e capaz na transmissão da ideia, trata os diversos personagens da história (quase diria da crónica), com toda a proximidade e dignidade como de Seres Humanos Verdadeiros. Chega a ser tocante o seu Humanismo. É definitivamente uma humanista e também historiadora não só do seu país, o Chile, como de muitos outros com histórias similares como Portugal e tantos outros.

Afinal a História replica-se em todas as geografias.

Curiosidade: nome das mulheres selecionadas para o romance: Nívea; Rosa; Clara; Blanca e Alba!
Post Scriptum:
Os preconceitos são terríveis e enformam muitas vezes as posturas, os comportamentos e as decisões das pessoas; e eu também fui sua vítima, no caso,  para com Isabel Allende. 
Ao longo dos anos, embora conhecendo bem sua existência e sucessos editorial e comercial, sempre a recusei ler por partir do princípio - agora confesso errado - que tal se devia ao nome familiar que carregava e que dele se aproveitava. 
Aqui me retrato.

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