segunda-feira, 27 de maio de 2013

'A CASA DOS ESPÍRITOS', de Isabel Allende

Ao ler as primeiras páginas deste livro a expressão que mais me ocorria era ‘lamechas’ ou romance ligeiro ou de cordel e, por causa dessa primeira impressão, quase desistia de o continuar a ler. Contudo e como é meu hábito, dei-lhe o benefício da dúvida até às páginas 100/120. Lá chegado dei-me conta então de que, à medida que a estrutura dos personagens e circunstâncias se iam definindo e consolidando, nomeadamente as de Esteban Trueba; o silêncio opcional de 9 anos e depois intermitentes de sua mulher Clara; os ambientes da vida dos trabalhadores da Quinta de Las Três Marias (sem quaisquer direitos) e finalmente o aparecimento de personagens revolucionárias, começou a despertar em mim outras leituras e comecei a ver o livro noutra dimensão: o que foi a vida dos países da américa latina na era pós-colonial e a tentativa de alguns – como o Chile de Salvador Allende, por exemplo – de reverter e suavizar a situação de pobreza extrema e inumana em que viviam seus povos.

Num exemplo mais conhecido e relativamente mais recente foi exatamente o que se passou, em particular em Angola: o poder exercido exclusivamente pelos antigos colonos passou, depois da independência, para as mãos de outros (poucos) senhores, agora locais, e por isso já não podem ser chamados de colonos; mas o povo continuou por longos anos ainda mais na miséria do que antes. Veremos o que o futuro lhes reserva!
O topo da antiga pirâmide do poder colonial foi decepado e belicamente substituído mas o leite e o mel continuou a não jorrar para jusante, para o povo. Os canais de irrigação descendentes continuaram bloqueados.

Põe-se aqui e pôr-se-á sempre o velho dilema, não político mas humano: em qual das situações o ‘povo’ viveria melhor: com os colonialistas ou com a independência? O futuro, mais uma vez deu e dará múltiplas respostas.

Recorda-se também aqui, por trágico, o que aconteceu e continua a acontecer no atual Zimbabwe, antiga Rodésia (Inglesa) de Iam Smith, tornado oficialmente independente em 1980. Até então, sob comando Inglês, o país chegou a ser considerado o grande celeiro africano. Robert Mugabe, governando-o desde 1981, levou o país ao caos económico e as pessoas à miséria. Com a sua popular reforma agrária distribuiu as fazendas altamente produtivas dos antigos colonos pelos locais, quebrando e destruindo com isso a cadeia produtiva e comercial do setor chave do país. O país sobrevive, ninguém sabe bem como, com uma inflação de 98%/dia e sem dinheiro!
(PIB anual: 7.000.000 USD para 12.000.000 pessoas / Portugal 230.000.000 USD para 10.000.000).

Este livro é uma tentativa literária de reexpor, reapreciar, questionar e trazer para a luz dos nossos dias, o que foi a história, (muitas vezes triste história) dos povos de toda a América Latina, e não só, nos anos pós coloniais, desde o Brasil dos Coronéis à Argentina Peronista, da Venezuela de Chaves à Colômbia dos cartéis da droga.
Deliberadamente a autora omite a identificação de qualquer desses países sul-americanos – embora todos saibamos qual o seu -, querendo com isso enquadrá-los e incluí-los a todos no mesmo cenário.

Neste romance por um lado em Esteban Trueba, com a sua truculência, seu autoritarismo, sua tenacidade e sua prepotência ilimitados temos a personificação bastante bem doseada da maneira como os Senhores plenipotenciários exerciam o seu poder discricionário (de longe o personagem mais rico, mais denso e mais emblemático do romance); por outro lado na família Garcia, em Primeiro, Segundo e Tercero, acompanhamos a evolução tímida da consciencialização cívica e política daqueles povos: da resignação tradicional e total do Avô Garcia, o mais antigo, passando pelo semi-resignado mas já mais consciencializado Segundo Garcia, até ao já revolucionário militante Tercero Garcia.
No prolongado ou entrecortado silêncio de Clara pode ler-se o silêncio dos pobres oprimidos e esquecidos, apenas chamados para os trabalhos dos senhores, sem quaisquer direitos ou vida própria.
Mesmo o todo-poderoso e inatacável Esteban Trueba haveria de sucumbir ao último dos regimes, o militar de Augusto Pinochet, ao relegar para segundo plano todos os não castristas.

Intercalo aqui um parêntesis para, no seguimento deste contexto, acrescentar um testemunho pessoal e presencial, tentando tipificar – agora já com mais isenção - o comportamento dos colonos (aviso: não tomar o todo pela parte…).
Estava eu em Angola na tropa (1972/1974), Sacassange, Luso, distrito de Moxico, e coube-me em missão, enquanto militar, dar proteção a uma frente de obra que a nossa Engenharia desenvolvia no Caminho-de-Ferro, sensivelmente a 30 Km do Luso, agora Luena. Embora destacados e acampados bem dentro da mata, de vez em quando ia à aldeia, de nome Chicala, para tomar café e conhecer os modus vivendi, usos e costumes daqueles habitantes. Afinal fazia parte das minhas funções a aproximação aos locais: ação ‘psique’, como era designada entre nós.
Havia a rua central – em terra batida – e de lá perpendicularizavam outras mais pequenas, onde se alinhavam as casas típicas das pessoas aí residentes.
Existia um café, um restaurante, uma mercearia, uma loja de roupas e calçado, e uma serração de onde saía o travejamento para os CF.
Ocorre que o dono de tudo isto era a mesma pessoa, o mesmo colono (português). Cedo me apercebi do esquema estabelecido e complacentemente permitido pelas autoridades: montar o cerco e o circo de forma que todo o dinheiro gerado na área através dos múltiplos negócios instalados lhe viesse ter às mãos!
O seu grande objetivo (o seu negócio core, como agora se diz) era o de garantir que a serração funcionasse em pleno e com isso a venda das traves já prontas para o CF e receber a ‘justa’ paga, a tempo e horas, do ‘estado’.
A maioria dos trabalhadores, quase todos, eram moradores nessa aldeia, tendo aí montadas suas vidas e onde viviam suas famílias.
Os CF, por questões de facilidades operacionais e logísticas, recrutavam aí mesmo nessa aldeia a maior parte dos trabalhadores, pagando-lhes o salário acordado.
O colono também aí recrutava e pagava aos trabalhadores para o trabalho da serração (c/ o dinheiro recebido dos CF).
Com os dinheiros oriundos dos CF e da Serração, os trabalhadores compravam os produtos de primeira necessidade justamente e só nos estabelecimentos do colono: mina de ouro para o colono que ficava com todo o dinheiro gerado. A isto se chama em letras gordas ‘colonialismo’.

A caraterização do personagem, do boneco Jean de Satigny, uma figura carismática, um cromo, está superiormente conseguido. A partir do momento em que já casado com Blanca e ‘chulando’ o sogro com uma ‘choruda’ mesada – vivendo só dela – consegue criar e explorar o seu próprio estilo de vida exuberante e supérflua; como um nababo.
Destituído de quaisquer normais princípios de vida, vivendo à custa doutrem - sogro e credores - nada o travou até atingir patamares de uma vida faustosa e opípara. Valia tudo desde que conseguisse alcançar os objetivos que almejava.
Cedo se percebeu aliás de que tipo de personagem se tratava; aí a autora semeou pistas em abundância.
A entrada em cena deste personagem não enriquece especialmente a história mas dá-lhe colorido.

Não se trata de um puro, simples ou inócuo romance, mas bem pelo contrário é recheado de quadros densamente carregados de carga político-social, obviamente influenciado pela ligação familiar e próxima que a autora tinha com Salvador Allende, que presidiu ao Chile socialista nos idos anos de 1970/1973. E admitimos que terá aceitado alguma influência e sensibilidade para este tema das desigualdades sociais que de resto tão bem descreve neste livro. Explica também a turbulência política, de séculos, vivida naquela região do globo.

A importância que é dada ao espiritismo através de Clara - questão que admito mas de que lhe desconheço os contornos ou amplitude – parece-me algo exagerado; ou talvez não se tivermos presente que o Candomblé (Orixás, Voduns ou Nkisis) ainda hoje influencia o comportamento religioso de muita gente em particular Africanos e Sul-Americanos.

Mais uma nota pessoal:
Quando andei por terras de África vivi bastante tempo junto dos nativos; no meio deles. Dava-me muito bem com eles aliás. Frequentava suas aldeias com todo o à-vontade e isso veio a facilitar aberturas bilaterais para que me pudesse aperceber também deste lado das suas vidas: do lado religioso ou transcendental. A presença do cristianismo era escassa e precariamente articulada e nada consistente o que deixava margem para a manutenção dos seus usos e costumes, incluindo o da aceitação generalizada da bruxaria como parte integrante, funcional e válida de suas vidas coletivas.
Um dia – 1973 - , enquanto militar graduado, fui chamado para instruir um processo judicial de um assassinato de uma ‘bruxa’: a aldeia tinha-se juntado e morto a dita bruxa por a sua bruxaria não se ter cumprido. No decorrer da instauração do processo de que fui encarregado (eu que tinha 20 anos de idade…) vi-me confrontado com um sério (para mim) dilema? Como encarar a questão? À luz dos conceitos ocidentais ou africanas? Sei e disso me lembro que o foi, inevitavelmente, à luz das leis ocidentais mas ainda hoje me pergunto se bem. Claro que oficialmente assim tinha de ser. Os colonos, como cruzadas da idade média, deviam difundir suas leis e religião; e eu era para todos os efeitos um representante – armado – desses colonos, desses cruzados. A questão era meramente de consciência, só minha. O meu problema de fundo era: quem dera o direito aos ocidentais de se imiscuírem nos modus videndi ou nas leis, usos e costumes daqueles povos? Porque não deixá-los viver com as suas leis? Hoje já tenho a resposta, mas isso ficará para outra altura.

Conclusão: romance interessante, com uma sequência cronológica bem delineada e conseguida e com grande domínio no uso das palavras certas e adequadas às circunstâncias. Aqui e além está um pouco exagerado mas tolera-se pela mais-valia do total da obra.

Nota:
A evolução da narrativa é em muitas páginas um copy/paste do que se passou em Portugal incluindo e principalmente na parte final, lembrando o que aqui se passou nos períodos a seguir ao 25 ABRL’74.

Com uma linguagem acessível, quase linear, todavia muito rica e capaz na transmissão da ideia, trata os diversos personagens da história (quase diria da crónica), com toda a proximidade e dignidade como de Seres Humanos Verdadeiros. Chega a ser tocante o seu Humanismo. É definitivamente uma humanista e também historiadora não só do seu país, o Chile, como de muitos outros com histórias similares como Portugal e tantos outros.

Afinal a História replica-se em todas as geografias.

Curiosidade: nome das mulheres selecionadas para o romance: Nívea; Rosa; Clara; Blanca e Alba!
Post Scriptum:
Os preconceitos são terríveis e enformam muitas vezes as posturas, os comportamentos e as decisões das pessoas; e eu também fui sua vítima, no caso,  para com Isabel Allende. 
Ao longo dos anos, embora conhecendo bem sua existência e sucessos editorial e comercial, sempre a recusei ler por partir do princípio - agora confesso errado - que tal se devia ao nome familiar que carregava e que dele se aproveitava. 
Aqui me retrato.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Valeu a Pena!


Decorria o ano de 1969.
O Homem, após inúmeras tentativas, acabava de poisar finalmente na Lua. A célebre pegada de Neil Armstrong correu mundo à velocidade da Apollo 11 que lá o levou. O pioneiro e marcante acontecimento gerou a crença nas pessoas de que o mundo girava rápido, seguro e em boa direção, timonado pelos americanos. Que o sistema capitalista americano vingava por contraponto com o comunista da URSS. Ao nível do grande público uns acreditavam no feito, outros, os mais céticos ou ignorantes, recusavam-no, alguns liminarmente.
Com este passo gigantesco a América tinha-se distanciado e ganho a corrida de Líder Mundial, deixando a URSS ferida de morte, começando aí a perder velocidade, vindo a sucumbir em definitivo em 1989 com a queda do emblemático muro de Berlim.
John Kennedy tinha conseguido, com a visibilidade e a onda de choque que o evento mundialmente provocou, fazer acreditar muita gente que, em definitivo, o regime capitalista havia triunfado.
Foi o início de uma nova era planetária.
De alguma forma foi o estertor dos efeitos da II Guerra Mundial. Os planos Marshall tinham terminado e vivia-se já a fase da liberdade iniciada pelos movimentos hippies nos anos 60 e do crescimento mais sustentado (?).
Em ’73, sob pressão de compra de mais petróleo por parte dos países em crescimento, por um lado, e pela ambição dos países constituintes da OPEP em receber mais royalties das companhias petrolíferas (pertencentes aos países compradores) por outro, o preço do petróleo disparou chegando aos 400%, ocorrendo, então, mais uma grande crise petrolífera e económica.
As economias mundiais tremeram.
A guerra no Vietnam [(1955/1975 ou 1965/1973) - (3 a 4 milhões de mortos entre os Vietnamitas do norte e sul mais 2 milhões do Camboja e Laos e 58 mil americanos)], chegava ao fim. A América cansada de tão longa e desgastante guerra, sem fim à vista, mesmo sem terem atingido os objetivos que os levaram àquela intervenção - fortes motivações hegemónicas e políticas normais à época: capitalismo/comunismo -, retiraram-se simplesmente envergonhados e sem glória.
O mundo vivia agitado.
Na China, ‘reinava’ o intocável e todo-poderoso Mao Tse Tung.
Na Rússia, Leonid Brejnev ditava a doutrina comunista e mexia os grandes tentáculos do polvo comunista internacional, como marionetas.
Na Índia, Indira Gandhi, a primeira-ministra sucessora do nosso conhecido Panda Nehru, sua filha, governava aquele imenso e populoso país.
No Brasil vivia-se ainda sob a influência dos todo-poderosos coronéis.
Na Europa em geral viviam-se tempos de Liberdade e de progresso.

Em Portugal viviam-se os últimos dias de Salazar e respiravam-se já novos e frescos ares, embora muito contaminados ainda pela guerra colonial que para lá arrastava toda a juventude criativa e ativa e muito do esforço financeiro nacional. Por detrás da cortina da política oficial a conspiração era generalizada. A final da era Salazar adivinhava-se próxima.

Aos adultos, com obrigações geracionais, eram colocados vários e importantes desafios: que pistas (culturais e profissionais) futuras deveriam antecipar para os seus descendentes?
Continuar em Portugal - fora das arenas internacionais - pobre, muito pobre, não era tido como hipótese possível: não havia trabalho para todos.
Emigração? Foi naturalmente a solução mais promissora e consistente arrastando para lá, por esse mundo fora, milhões de portugueses, fugindo assim, também, ao serviço militar obrigatório.

Meus pais, oriundos do meio agrícola e dele vivendo, querendo proporcionar aos seus 5 filhos (houve mais um nado-morto) um futuro mais risonho, bem distinto e melhor do que o deles próprio prometia, e querendo acompanhar seus primeiros voos e proporcionar-lhes simultaneamente um núcleo familiar acolhedor e consistente de onde pudessem na devida altura partir livres, começaram por, com incalculável esforço económico-financeiro, oferecer a todos a possibilidade de estudar ou ferramentas laborais práticas. Cada um de nós à sua maneira, aproveitou a oportunidade (e aqui fica da minha parte o meu eterno reconhecimento; chumbei no 2º ano mas meus pais não desistiram de mim).

Meu pai era um homem detentor de uma mentalidade não só desajustada para o meio em que vivia, como principalmente com um overview abrangente bastante à frente dos seus pares regionais, não obstante a informação que chegava ser escassa. As visitas, felizmente assíduas dos tios que viviam no Porto e as novidades arejadas que traziam, eram lufadas de esperança que incutiam neles e nos filhos.
Vir para a cidade, Porto, começou aos poucos a formatar-se como hipótese de saída tentando fugir assim à inércia e à falta de perspetivas locais.

É certo que – facto na altura importante – meu pai tinha conseguido tirar na idade própria a 4ª classe; o único de 5 irmãos a consegui-lo. O contato com os livros, tenho por certo, pode ter sido um dos elementos decisivos e ter sido uma âncora e futuro farol iluminador de apostas certas no seu futuro e no dos filhos. Tinha a certeza, como poucos, que o futuro dos filhos passaria ou pelos livros ou por um ofício prático de que o mercado de trabalho viesse a necessitar.
Estou certo que teria sido outra e bem diferente a sua vida profissional, social e financeira se tivesse tido oportunidade e acesso a mais estudos. Apesar de humilde ele sabia, e mais tarde eu o observei também, que tinha capacidade para muito mais.
Não se perdeu, todavia, um zeloso e bem-sucedido agricultor – que sempre foi - mas ter-se-ia ganho no mínimo um bom e empenhado académico.

Como e porquê o meu avô o pôs a estudar (só a ele!)?, ainda hoje para mim não é totalmente claro. Sei que o Patrão da Quinta da Veiga, Freguesia de Vale de Bouro, onde não nasceu mas trabalhou até casar (aos 30 Anos/1944), era um Juiz que vivia em Fafe e meu avô tinha necessidade de se comunicar com ele por escrito, principalmente para prestação das contas da Quinta. Admito ter sido essa a razão principal senão a única.

Meu avô paterno era, dizia-se, (meu irmão Chico que o conheceu bem o confirma) um homem muito bem-parecido, bonito mesmo, um homenzalhão típico de aldeia, mas ‘bon-vivant’ e ‘não gostava de trabalhar’, embora a quinta fosse grande; era sim, dizia-se também, bom mandador. Quanto ao resto era homem de adega, isto é, tinha muitos amigos e recebia-os sempre em longas e prazenteirosas conversas com uma caneca do bom verde tinto da região rodando de mão em mão.

Orgulhoso, qb, era homem de se fazer passear pelas feiras onde exibia a ‘melhor junta de bois’ da região. De resto, criava uma junta de bois, a par de outras, só para exibição pública. Para os poupar para esses eventos, só muito excecionalmente os punha a trabalhar. Peças animais exemplares que lustrava e enfeitava para exposição em feiras e romarias, à boa maneira da época, arrancando sempre os melhores troféus.
Por orgulho, teimosia ou tradição machista, afastou de casa o Tio João por discordância quanto à escolha da sua futura mulher. Existiu sempre, de resto, uma relação conflituosa com os seus filhos, quezilenta mesmo, exceto com o meu pai. Meu pai viria a interceder, já casado, para a melhoria da relação com a tia Rosa, a mais nova do grupo, entusiasmando-o a presenteá-la também com o tradicional ‘cordão’ de ouro. Todas (?) as moçoilas da aldeia o tinham e era uma mostra pública distintiva e honrosa.

Não foi para França para a 1ª Grande Guerra Mundial, mas seguiu para África, para uma das ex-colónias portuguesas (não sei bem para qual mas penso ter sido Angola), também como militar, nos anos 1914/15. Era meu pai já nascido.
Morreu cedo, mesmo para a época – com 60 e – e, segundo meu pai dizia, por doença contraída outrora em África, tese que não acredito: não me parece razoável que uma doença contraída aos 20 anos se revelasse fatal apenas aos 60! Meu pai falava em dores (horríveis) no fígado/rins. Pedra? Cirrose? Continua a dúvida.

Concordou e aplaudiu a relação amorosa com a minha adorável mãe por poder acrescentar às razões de boa índole e figura pessoal, o facto de ser oriunda de família afamada e honrada (e já com alguns bens próprios ao luar – a Garceira).

Uma palavra para minha avó paterna, Emília de seu nome, que viveu até aos 90 (?) e que conheci melhor que meu avô de quem de resto guardo pálida recordação. Mulher simples, humilde, sem grande intervenção na condução da vida da Quinta e pouca, também, na doméstica. Mulher magra, bastante magra, sempre, mas dotada de uma veia humorística social que recordo. Esse gene de bom humor foi herdado nomeadamente pelo seu filho Manuel (o mais ‘simples’ dos irmãos/também foi para África) e pelo meu Irmão Zé. Foi ela a Madrinha da minha irmã Emília e também do Zé.

Meu tio João seguiu as pegadas do meu avô, seu pai, não só ficando na mesma Quinta como herdando-lhe os amigos, a dança da caneca na adega, e o prazer de se fazer passear pelas feiras. Morreu cedo, penso que por volta dos 65 (ainda fui ao seu funeral).
“Não chores, Avelino, dizia para meu pai, vai ser um funeral bonito e com muita gente …”

Este meu tio teve uma passagem de vida, contada pelo meu pai que, por irresistível e contra a corrente religiosa então em vigor, aqui a tentarei reproduzir.
O pároco local era, na altura, o Padre Manuel que para lá veio para ‘curar’ as Freguesias de Gagos e de Vale de Bouro. Era sensivelmente da idade do meu pai e iniciou sua vida paroquial, lá mesmo, nessas duas freguesias. Com o tempo veio a ficar muito amigo não só do meu pai como do resto da família, quer da do lado do meu pai (Veiga/Vale de Bouro), quer da do lado da minha mãe (Quelha/Gagos), incluindo este meu tio João.
Executava os serviços religiosos, qb, mas mantinha bem vivos muitos outros interesses, incluindo o de famoso negociante, principalmente de terrenos/quintas (meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro para esses negócios). Meu pai por lhe ser muito próximo, amigo mesmo, dava-lhe ‘conselhos’ alertando-o para não se expor em demasia, para ser mais recatado e para que se dedicasse mais à igreja; ao que ele prontamente retorquia: Oh, Avelino, não é preciso andar sempre metido na igreja; basta ‘dizer’ a missinha e o resto e depois há que tratar da vida. Não é preciso estar sempre a rezar…

Foi este padre, de resto, que nos batizou a todos tendo curado essas duas freguesias até à sua velhice. Está, inclusive, sepultado do cemitério de Vale de Bouro.
Lembro-me muito bem dele principalmente por me ter incentivado para os estudos. Fomos os três – ele, meu pai e eu – no seu Toyota Corolla a Guimarães para o exame de admissão (devo-lhe essa disponibilidade). O entusiasmo do meu pai e seu apoio foram importantes para as indecisões dos meus 10 anos de idade.

Mas, e a propósito da história que queria contar passada entre ele e o tio João…
Contava meu pai que um dia os ‘bacorinhos’ dele, do tio João, lá na Quinta da Veiga, começaram a morrer uns atrás dos outros. Preocupado e acossado pela esposa, minha tia Maria, foi falar com o Padre para que este rezasse umas missinhas a ver se os ‘bacorinhos’ paravam de morrer. Passada a preocupação e a intenção ao Padre e encomendando-lhe a esperançada ‘missinha’, responde-lhe ele: oh, João, a tua mulher ainda é de bom tempo… então ela ainda acha que isso lá vai com ‘missinhas’!!!
O meu avô materno era completamente diferente do paterno.
Simplificando, pode dividir-se sua vida em duas fases completamente diferentes: a de solteiro e a de casado com minha avó.
Enquanto solteiro foi, também ele, um bom-vivant. No dizer da minha mãe (opinião de filha é suspeita!), era um homem bonito e era também um exímio tocador de violino. Amigo das diversões típicas das aldeias na altura, não falhava uma desfolhada – sempre acompanhado pelo seu violino – e passeava-se pelas alegres, bonitas e animadas romarias incorporado nos ranchos, cortejado por muitas moçoilas. É fácil deduzir que sua vida tivesse sido, nessa fase, intensamente vivida.
Bastante mais tarde, tinha eu já mais de 15 anos, revelou ‘distraidamente’ minha mãe que tinha mais 3 (?) irmãos pelo lado do meu avô, nascidos desses tempos de boémia (não sei se de mães diferentes). Tios que nunca conheci mas que mantinham com os outros irmãos relações, apesar de bastante secretas, francas e amistosas: de (½) irmãos.
Com o casamento com a minha avó enterrou definitivamente todo esse passado boémio e dedicou-se por completo à família de onde saiu, de resto, uma grande prole: 10+2 filhos (+2, ambos chamados Joaquim, precocemente falecidos: 7 meses o primeiro e 5 anos o segundo). Tornou-se um homem doméstico não só no sentido marital como paternal dos termos. Atendia às opiniões de minha avó, mesmo em questões de negócios, e foi exemplarmente amigo da mulher e dos filhos. As noites eram passadas à lareira com os filhos sentados no regaço ou ao seu redor.
Criou com a sua postura uma escola de vida que influenciou todos os seus filhos e, mais tarde, as gerações seguintes ainda beberam muito dessas raízes.
Trabalhou uma grande quinta, a da Quelha, onde cresceu todo aquele rebanho. Com as economias aí conseguidas viria a comprar mais tarde a Garceira - um bom, agradável e bem localizado espaço agrícola -.
Meus pais, depois de casados, viveram aí os seus primeiros anos e aí nasceu também meu irmão Francisco. À morte destes meus avós – morreram cedo, aliás - esses terrenos foram comprados, em partilhas, por um dos seus filhos, o António, e ainda hoje continua nas mãos dessa família: sua esposa, minha tia Filomena, ainda lá está.
Começaram aí meus pais os seus primeiros anos de casados – talvez 3 -, mas cedo souberam que precisariam de uma quinta agrícola maior, leia-se, mais rentável, capaz de dar maiores garantias de sustento para a prole que adivinhavam aí viria. Apareceu então Atães que preenchia alguns dos quesitos. Era uma quinta interessante apenas com o inconveniente de ser muito trabalhosa: os campos eram longe da casa de habitação.
Os donos, as Lacerdas, a quem cognominamos de ‘bichas cadelas’ por tanto nos terem menosprezado, não ofereceram resistências, pelo contrário praticamente convidaram meus pais para ir para lá.

Uma pequena nota aqui para dizer que, naquela altura, dominavam os grandes senhores, donos de muitas quintas e com um poder quase total sobre os outros. Com muito acerto poderiam ser tidos como Senhores Feudais. Havia uma reverência desmesurada para com eles, inimaginável nos dias de hoje.
Afinal, nalguns aspetos, hoje não é muito diferente: um senhorio só aluga uma casa a alguém que lhe dê garantias de que lhe pagará a renda mensal; um patrão só dá 10 ao empregado que lhe retornar 100… Outrora o princípio era o mesmo: as quintas eram alugadas a quem garantisse que pagaria o inicialmente estipulado; um patrão só aguenta um funcionário enquanto este lhe garantir a proporção do lucro inicial.
Foi aí em Atães que nasceram os outros filhos e aí estivemos todos cerca de 10/12anos.
Eu tinha 10 quando nos mudamos para a Boucelha.
Nota:
Em 1995 esta família da Quelha contava 226 elementos, de entre os quais 110 netos e 97 bisnetos.

Voltando ao ciclo restrito familiar e à razão deste apontamento, meus pais lutavam por esses tempos, com um delicado dilema: por um lado a i) certeza de que o futuro para os filhos e, por arrasto, também para eles próprios, não se realizaria nos horizontes estreitos daquela aldeia escondida, esquecida e paralisada; não estava na tão difícil, longínqua e desestruturante emigração e, por outro, com a ii) esperança de encontrar uma solução mais promissora, algures mais perto e mais doméstica: talvez a cidade do Porto.
O irmão mais velho, o Chico, logo após o regresso da tropa [(nos Açores – 1967 (?)] arranjou trabalho no Porto, e não só denunciava claramente que não desejava regressar mais à aldeia como, mais esclarecido pelo overview com que entretanto tinha tropeçado ao circular por um mundo real e mais vasto, começou a pressionar toda a família para que viessem todos para o Porto; a Mila, com os seus 20 anos de idade e mestre em costura, tinha seus horizontes profissionais locais muito reduzidos; eu e o Zé tínhamos abandonado ou estávamos em vias de abandonar os estudos, querendo entrar na vida profissional ativa, privilegiando a necessidade de começar a assegurar a independência económico-financeiro; o Nando tinha acabado há pouco tempo a 4ª classe.
O modus faciendi e, consequentemente, produtivo da agricultura então em vigor na região, não fora uma gestão económica extraordinariamente cuidada – e isso incluía tirar à boca em quantidade e qualidade e não só – era a de mera e precária subsistência, não respondendo capazmente a famílias numerosas. Meus pais foram exímios e empíricos profissionais nessa gestão e conseguiram que o ‘porquinho’ não emagrecesse. Lembro aqui que os 5 filhos vieram todos a seguir a II Guerra Mundial: o Chico, o primeiro, nasceu em 1945 e o Nando, o último, em 1957; ou seja, nos anos difíceis do pós-guerra em que Portugal, por ter sido neutro, não teve direito aos dinheiros do Plano Marshall. O País teve de viver com o que dentro de portas se produzia: ‘orgulhosamente sós’, doutrinava Salazar.

Entretanto viviam já no Porto e razoavelmente alicerçados, quatro irmãos da minha mãe. À medida que visitavam a aldeia e em resultado das normais conversas entre irmãos, começou-se a trabalhar seriamente a hipótese de nos mudarmos para o Porto. A tia Rosa/tio Brochado, sempre apoiados pelos outros – Gervásio, José e Manuel - foram o elemento charneira na condução do processo.
Eram eles, então, vizinhos de uma família - Sr. Monteiro/Alzirinha - com quem mantinham uma boa relação de vizinhança e amizade. Dispunham, esses vizinhos, de uns terrenos e de uma casa relativamente grandes que minimamente davam para nos alojar. Conhecedores da decisão, então já tomada, de nos mudarmos para o Porto, dispuseram-se a dispensar parte dos terrenos e da casa para nós. Depois de se deslocarem à aldeia, à Boucelha onde vivíamos, para nos conhecer melhor, aos meus pais principalmente, decidiram aí mesmo aceitar alugar a parte possível do que tinham. A visita correu bem gerando-se de imediato empatias mútuas que garantiram logo ali a decisão. Muito terá contribuído para isso – soube-o mais tarde – não só a simplicidade e honestidade das pessoas que encontraram, como o esmero com que meus pais tratavam da casa e dos terrenos. O Sr. Monteiro ficou, manifestamente, bem impressionado com os muitos canteiros de jardins com que meus pais gostavam de alindar as zonas limítrofes da casa de habitação.

Foi tomada, então, a decisão de virmos todos para o Porto, para Ramalde/Viso, Rua Central.

Foi para mim e também para todos os meus irmãos, a par de muitas outras, a decisão mais assombrosa e de maior alcance que meus pais tomaram na vida.

Alheios a tudo e a todos, fazendo ouvidos moucos aos contos e ditos, aos mexericos próprios dos meios pequenos, e, focados sempre no seu objetivo/sonho de anos, de tudo abdicaram: desde todos os animais domésticos, ao recheio próprio da vida agrícola, incluindo as alfaias, de tudo se desfizeram para recomeçar outra vida noutro lugar – a 90 km de distâncias -, então ambos já com 57 anos de idade.
Foi obra!
Um passo de gigante ‘idêntico ao de Neil Armstrong’.
Ainda hoje todos nós, seus filhos, nos vergamos e admiramos pela sua capacidade, determinação e coragem.

A partir daquele novo ninho, já no Porto, todos nós fomos abrindo nossas próprias asas e tomando nossos próprios rumos, regressando sempre à casa mãe para reabastecimento emocional. Como os pombos largados aqui ou além, nunca nenhum de nós perdeu o sentido da orientação familiar. 

A decisão que tomaram foi acertada?
Pessoal e reconhecidamente não tenho a menor das dúvidas.
Meus pais projetavam as suas decisões partindo do princípio de que o seu alcance seria para muito tempo; que durassem, pelo menos, até aos seus 90 anos (meu pai viria a falecer aos 95 e minha mãe fará 100 em 2014 …) e que, mais ainda, seus descendentes ficassem confortáveis com elas.
Seus últimos 40 anos de vida (foram saudáveis até aos 90) foram bem mais completos, bem mais aconchegados e bem mais felizes, principalmente, por terem tido sempre por perto seus filhos, netos e bisnetos. Com as decisões que foram tomando pouparam todos os filhos à inevitável saga da emigração.
Bem hajam por isso e por tudo.

Uma última e justa nota:
É verdade que, mercê de várias circunstâncias - algumas das quais aqui ficam ditas ou subentendidas - foi meu pai o visionário e o timoneiro: quem pensava e tomava as decisões. Não é menos verdade que só as conseguiu concretizar porque teve sempre a seu lado a minha doce mãe que percecionando o alcance dos seus projetos o incentivava a prossegui-los. Um par que, funcionando em sintonia, tudo facilitou e agilizou.

Obs.:
Nos últimos 3 meses fui à aldeia 2 vezes por motivos fúnebres. Esses acontecimentos, ou porque meus tios falecidos - com os seus já 90 anos - tivessem sedimentado muitas amizades ao longo das suas vidas ou, talvez mais acertadamente, porque os seus filhos e meus primos - em grande número e bastantes influentes no meio -, congregassem para o evento, também eles, muitos dos seus conhecidos e amigos, o certo é que a ambos os funerais afluiu, para as tradicionais condolências, muita gente das redondezas. Alguns, poucos, reconheci; um ou outro, inclusive, identifiquei como meus colegas da escola primária.
Como nestas ocasiões há tempo para tudo, aproveitei também para observar as pessoas que acompanhavam o féretro.
É certo que os rituais da circunstância aconselham recato até no vestuário. Mas, comentei com meus irmãos: estas pessoas parecem-se com as de há 50 anos atrás. A atualização, salvo algumas exceções entre as quais os familiares, pouco se nota. Ou seja, imaginei na postura daquelas gentes, a nossa sorte (infortúnio) se por lá tivéssemos também ficado.

Post Scriptum_1
Segundo a Amélia, filha do Tio João e minha prima, seu pai faleceu com 70 Anos.

Post Scriptum_2
ABR’2016
Porque justa e merecida (e com pesar por ser póstuma), acrescento uma palavra de reconhecimento muito especial para o tio Zé. Malogradamente já não a vai poder ler pois deixou-nos muito recentemente (22fev’2016), mas faço questão de a deixar dita; também para que a sua família - Natália e Gisela - saiba deste nosso apreço pelo seu pai e avô. Creio, não obstante, que ele sabia desta nossa estima.
Entre o tio Zé e os pais houve desde cedo uma grande amizade de que não sei explicar bem os fundamentos, mas sei que existiu. Foi ele, tio Zé, que em 1944 aquando do seu regresso do serviço militar obrigatório em Angola (tendo por camarada d’armas o meu tio Manuel, irmão do pai), trouxe, de lá - em vésperas do casamento dos meus pais - o açúcar para os bolos da festa. Pequeno pormenor, por certo, mas que indicia e pode mesmo ter sido o início ou a confirmação - não o sei - de uma grande amizade que o tempo viria a consolidar ainda mais. Ao longo da vida, e sempre que ia à aldeia, a minha casa era visita obrigatória. Observava eu, então pequeno, que ficavam demoradamente à conversa, em torno de assuntos que na altura não entendia. Sua filha Natália passou algumas férias lá em casa e, também por ela, nutríamos (e nutrimos) um carinho bem especial.
Meu tio Zé era um homem que a vida fez: intrépido, firme nos seus propósitos, muito focado nos objetivos a atingir, algo teimoso até; preferiu sempre a ação às conversas de circunstância.
Foi ele o maior suporte e quem dissipou as maiores dúvidas e obstáculos que se punham à vinda para o Porto, em resultado da muita confiança que existia entre eles.
Não quero retirar uma vírgula, pelo contrário, devia acrescentar ainda mais mérito e reconhecimento, ao envolvimento e empenho da tia Rosa e tio Brochado que foram inescedíveis - e também por isso inesquecíveis - não só neste processo como no acompanhamento logístico em anos futuros. Mas a cumplicidade de vida que existia entre o tio Zé e os país, foi de fato tão colaborante quanto decisiva.
Já depois de instalados no Porto, e com aquela idade… sendo o tio Zé empregado no Instituto Industrial, ali junto ao hospital São João, mexeu com humildade e mestria os seus ‘cordelinhos’, conseguindo lá um emprego de Contínuo para o pai, através da D. Flávia, pessoa com capacidade de decisão bastante para o efeito naquela instituição. A ‘cunha’ funcionou e viria a empregar um pouco mais tarde, também, o tio do Araújo, José Moura, marido da tia Maria, irmã da mãe.
Aí trabalharam os três até aos seus 70 anos, e desse emprego obtiveram as suas reformas (única, no caso do pai).
Fizeram-se companhia até às suas mortes, visitando-se com regularidade enquanto puderam.
Reposta um pouco mais a verdade, reitero a gratidão familiar.

http://dinamico-dinamico.blogspot.pt/2015/11/valeu-pena-outras-historias.html