quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Retalho de vida familiar

Decorriam os anos 50. Era eu um petiz de 4/5 anos que começava lentamente a abrir os olhos, ainda remelados, para este (aquele) mundo. Ia detetando e despertando aos poucos e ao meu jeito, também à sombra dos mais velhos, para as pequenas e grandes coisas da vida.

Pela porta sempre entreaberta pequenas poalhas novas de vida iam passando e recheando o meu pequeno baú.

Com aquela idade, os acontecimentos, as reações e ruídos da natureza, nomeadamente os mais violentas - como as grandes trovoadas -, eram ‘fenómenos’ tenebrosos e incompreensíveis: eram as nuvens que esbarravam umas contra as outras, diziam uns; era Jesus a ralhar, diziam outros.
E os temíveis relâmpagos vindos do nada e que de repente transformavam e recoloriam todo o céu, o que pensar deles?
E o arco-íris, que coisa estranha (e bonita) seria aquilo?
... era a tempestade que se estava a reabastecer, diziam uns tantos!
O que é que se passava lá em cima, afinal?

O certo é que ocorriam e aos meus tenros olhos de inocente criatura, eram muito mais intensos e poderosos; enormes e assustadores.
Só mais tarde é que o tempo os apequenou (?) e relativizou.

Na aldeia os horizontes eram longos e largos, pelo menos para mim, e os sons tonitruantes das grandes tempestades e trovoadas ecoavam infindavelmente pelos montes e vales. A audição, a visibilidade e os impactos destes desmedidos e ocasionais acontecimentos, bem como as sensações que eles provocavam, agitavam e alteravam as rotinas de toda a gente.

As casas, de telhados sem forro nem teto (telhas a descoberto), portas e janelas com aberturas consideráveis (o termo calafetagem não era então conhecido), transmitiam a sensação de que estar dentro ou fora delas, era quase a mesma coisa.

Sentindo os cinco filhos tolhidos por estes desconhecidos e grandes temores e reagindo com os seus impulsos paternais (culturais e históricos), meus pais reuniam-nos em local supostamente mais seguro (?) - dentro de casa - tal como a galinha protege seus pintainhos dos perigos noturnos ou tempestades premoniçadas, debaixo das suas asas inchadas.
… e rezávamos, rezávamos a oração da Santa Bárbara.
Das várias versões conhecidas selecionei esta, que me parece a que mais se aproxima da que então ladainhávamos:


"Santa Bárbara
Se vestiu e se calçou,
Nosso Senhor encontrou
E Lhe perguntou,
Bárbara onde vais?
Senhor eu vou ao Céu,
Abrandar os teus caminhos,
Mandá-los para o monte do rosmaninho,
Onde não haja pão nem vinho,
Nem bafo de menino,
Nem ramo de oliveira,
Nem coisa que santa seja"

Não me perguntem agora se a reza resultava.
O certo é que a tormenta lá acabava por passar, fruto mais da sua evolução natural e não tanto pelas nossas inocentes rezas. A bonança regressava, a petizada sossegava, a vida normalizava e a oração a Santa Bárbara guardada sine die.

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