70! É bom ter 70.
Está a valer bem a pena
A idade é uma circunstância
De há tempos, quando confrontado com a idade, tateava uma resposta: vou fazer 70!, a que juntava uma expressão remoçada de 60, 65 no máximo, à espera do ‘não parece!’ do outro lado. Ou seja, num processo de aproximação lenta, irrigado gota a gota, a mente, sábia, como que de pertença alheia, foi gerindo e postergando habilmente o processo natural diluindo-o impercetivelmente pelos dias. O embaraço tonto que o ‘não parece’ ocasionava foi dando lugar à cedência serena. Devagarinho, pois, calçando pantufas e percorrendo o labirinto sinuoso da mente, os 70 foram aterrando suavemente sem azedumes ou queixas. Instalaram-se confortavelmente no seu lugar com promessas epifânicas.
E com um propósito claro: manter todas as portas do mundo próximo e longínquo escancaradas a fim de que pitada alguma do que por aí ocorra se perca e, acima de tudo, tudo seja vivido, sentido e degustado com prazer intenso e na medida certa.
A mente continua atenta e igualmente sábia quando alija tralha supérflua e se refina no essencial: empatia com as pessoas, principalmente com quem a seu lado caminhou e caminha mas, sobretudo, com os seus, mais e menos próximos. E com o mundo em geral, obviamente.
Porque terá deixado alguma energia ao longo das estradas mais íngremes, o hospedeiro de uma tal mente terá de fazer um esforço extra - incluindo estimulação cognitiva e física - para se manter colado ao pelotão da frente.
A mente humana é prodigiosa!
A idade é uma (geo)circunstância. Gosto desta expressão que para mim quer dizer que cada idade, qualquer idade, é um status, sim, mas também um estadium. Em resultado de diversas camadas de vivências sobrepostas, chega-se a qualquer delas apreciando-as com o esmero dos temperos que foram sendo preferidos. Em consequência, nenhuma idade é igual e, digo eu, ainda bem. A desigualdade e a aleatoriedade daí resultantes favorecem a novidade e a transitoriedade em cada uma. E ao desigualá-las, justifica e estimula-as. Apetece dizer que estas metamorfoses se adaptam aos quesitos de cada etapa.
A vida é um laboratório em atividade onde cada ser aparta os reagentes com os quais quer fazer a experiência de viver.
Olhando um pouco para trás, mas sem desperdiçar muito tempo - até porque o que inebria os sentidos está sempre para a frente -, dou conta de assim ter acontecido. Utilizei os elementos disponíveis em cada fase de acordo com os meus recursos pessoais.
Claro que nem sempre resultou à primeira - isso é que era doce… como sói dizer-se -, mas o espírito experimentalista e animista prevaleceram e propulsaram uma segunda e terceira tentativas.
E tem sido uma vida rica em pluralidade e emoções. E aqui não me refiro a feitos heróicos ou realizações transcendentes - que não os houve ou há, sublinho -, mas ao grau de importância que lhes dediquei e dedico.
Domina-me um sentimento de contentamento e muitas vezes de felicidade que praticamente neutralizam os menos conseguidos. Tenho, inclusive, por gosto e opção sobrevalorizar os bons, reconverter e até mitificar os outros. Ficam mais interessantes assim.
Os carrosséis onde viajo - ora nos rápidos/lentos, ora nos suaves/turbulentos, ora nos prazerosos/agitados, ora na montanha russa - aceleram o ritmo cardíaco, rodopiam emoções, oxigenam o cérebro, tonificam momentos, a tudo dando inspiração e grandeza.
Há dias, em alongada tertúlia com compagnons de route, recuperamos eventos e sentimentos comuns, ruminamos risonhos sobre eles para rematar: temos sido uns afortunados! E fomos passando em revista, em ecrã panorâmico, inúmeros acontecimentos presenciais ou distantes que vivemos até agora, os mais marcantes a nível pessoal, local, nacional e global.
Concordamos que, neste nosso tempo - anos '50 para cá -, o mundo teve uma progressão acelerada; que ciclicamente aumentou e diminuiu de tamanho. Aumentou porque assumimos dominar melhor o seu todo, e simultaneamente também diminuiu no sentido em que praticamente todo ele nos ficou geograficamente mais acessível por mar, terra, ar e conhecimento; que vivemos dentro de todo ele um tempo rico em dimensão e imprevisibilidade tão diversas que vão do primeiro contacto do homem com a lua à paternidade, passando pelo aparecimento da internet e agora a pandemia.
Chegamos a Marte.
E repescamos ao acaso e ao ocaso mais alguns numa transe calma de contentamento aos quais acrescento a esmo, agora, outros mais:
Anos 50
Apanhamos as sequelas da II guerra;
Sub valorizamos as dificuldades sentidas ao tempo por pais e avós;
Comemos, sem refilar, um terço de uma sardinha a pingar em muito pão caseiro;
Íamos à 'Loja' comprar mistura de café, açúcar e petróleo para a candeia;
Roubamos uma lasca ao bacalhau;
Compramos um 'trigo' às escondidas à padeira do giro;
Corremos descalços e sozinhos para a escola;
Aprendemos nas escolas de Salazar;
Memorizamos as fotografias de Craveiro Lopes e Américo Tomás a olhar-nos fixamente das paredes;
Apanhamos reguadas nas mãos pequeninas e frias;
Cantamos o Hino Nacional no começo da aula;
Decoramos os nomes dos rios, das estações da CP, das províncias...
Sabíamos de cor a música da tabuada;
Não percebemos o crucifixo na parede;
Catequizamos nas sacristias das igrejas;
Rezamos o terço à noite;
Não sabíamos o que dizer ao padre na confissão;
Deitamos o pião, corremos atrás do arco e fintamos com a bola de trapos;
Roubamos fruta das árvores dos vizinhos;
Brincamos no terreiro e na calçada até cansar;
Alongamos o dia estival noite adentro para ver as alegres desfolhadas e malhadas;
Esgueiramos e foliamos pelas festas e romarias até às tantas;
Salivamos ao ver os doces expostos nas tendas;
Construímos brinquedos e engenhocas;
Corremos desabridos, livres e soltos pelas aldeias, de calças rotas no cu, ao sol, à chuva e ao vento;
Apressamos para o Café para ver as primeiras imagens da tv, a p&b;
Ignoramos o que se passava em Cuba de Fidel;
Escutamos de olhos arregalados as histórias da carochinha contadas e repetidas à lareira;
Esperamos pela biblioteca ambulante da Gulbenkian;
Líamos as histórias de encantar;
Tomamos banho nus nos rios limpos;
Anos 60
Entretínhamos a ver o 'Dói Dói, a Pincelada e gato Renato’, de Júlio Isidro;
Escutamos as histórias de Solnado nos transístores a pilhas;
Aceleramos com JM Fangio;
Patinamos com o hockey de Livramento;
Celebramos, quase, a conquista do mundial de futebol de Eusébio em '66;
Despertamos e soltamos o romantismo com as canções francesas e italianas;
Lemos as aventuras dos ‘Cinco’ e dos ‘Sete’;
Imitamos Piaf, Mireille Mathieu, Gigliola Cinquetti, Joselito, Sinatra, Redding, Dylan, Elton John, Ton John, Simon & Garfunkel...
Horrorizamos com a Guerra do Vietnam;
Segredamos sobre Gulak de Estaline;
Distanciamos da China de Mao;
Admiramos Nelson Mandela;
Chacoalhamos nas nossas as ideias de J. Orwell;
Animamos com a vitória de John Kennedy;
Trajamos como os hippies;
Choramos e vimos chorar pelos nossos soldados na Invasão de Goa/Damão/Diu;
(como chorava e gritava a Sra. Teresa do Pomar de Cima pelo seu filho Manel)
Suspendemos a respiração com os mísseis de Cuba;
Olhamos, subimos e aplaudimos a minissaia;
Demos as boas vindas à camisinha;
Percorremos todas as curvas de Marilyn Monroe e BB;
Estonteamos com a beleza de Raquel Welch;
Mexemos o capacete com o Rock'n'roll de Elvis;
Criamos Conjuntos Musicais;
"Cantamos o fado" às gajas e trovas às donzelas;
Empurramos Salazar da cadeira;
Desiludimos com Marcelo Caetano;
Corremos para o 'make love not war' de Woodstock;
Cantamos, saltamos e dançamos com os Beatles, Stones, Joplin, Freddie Mercury, e tantos outros;
Preparamos o futuro nas escolas técnicas, nos liceus, nas universidades, nas profissões tradições;
Empinamos o nariz para a lua para ver Neil Armstrong a poisar lá o pé;
Surrupiámos revistas da Playboy;
Enchemos de otimismo com Martin Luther King;
Seguimos, assustados, a Guerra dos Sete Dias;
Vimos Música no Coração, Dez Mandamentos, Zorro, Mascarilha e muitas CowBoyadas;
Saltamos de galho em galho com a destreza de Tarzan atrás da Jane;
Rimos a bom rir com o Bucha&Estica;
Treinamos novo jeito de andar com Charlot;
Embalamos com a valsa da meia-noite nos bailes da paróquia;
Sacamos um ’roço’ nos bailaricos das festas populares;
Anos 70
Voamos do torrão natal;
Despedimo-nos dos nossos emigrantes ‘a salto’ para o mundo;
Desejamos que terminasse a Guerra Fria;
Passeamos em calças boca de sino;
Deixamos crescer bigodes farfalhudos, barbas e cabelos;
Especulamos com o Watergate;
Amedrontamos com a Guerra em Angola, Moçambique e Guiné;
Participamos na guerra colonial, esse destino fatal;
(um destino que ninguém queria mas que ninguém o apaga do seu curriculum)
Exibimos o quico de ‘Che’;
Acreditamos no ‘Portugal e o Futuro’ de Spínola;
Lá longe, juntamos nossa bravura e saudade às lágrimas das esposas, dos pais e dos irmãos;
Dissemos adeus às armas;
Desejamos e fomentamos a Revolução dos Cravos;
Aprendemos a democracia em Abril de 74;
Engrossamos o coro popular com a Grândola Vila Morena e Gaivota;
Escaldamos com o Verão quente de 75;
Celebramos a liberdade e reivindicamos direitos pelas ruas apinhadas;
Engrossamos as filas em busca dos caramelos espanhóis;
Dormimos ao relento nos parques de campismo;
Gargalhamos com o Pátio das Cantigas, Leão da Estrela, Aldeia da Roupa Branca…
Cancelamos tudo para ver ‘Gabriela Cravo e Canela' e o Coronel Ramiro Bastos;
Disputamos bilhetes para ver ‘O último tango em Paris’;
Cantamos com Madonna o ‘Don’t cry for me Argentina ’;
Peregrinamos para as praias algarvias;
Pernoitamos nas camionetas a caminho de Benidorm e Salou;
Execramos Pol Pot;
Mal-dizemos Pinochet;
Iniciamos vida profissional;
Transplantamos corações com Christiaan Barnard;
Aguentamos duas bancas rotas nacionais seguidas, ‘77, '83 e terceira em 2011;
Sobrevivemos a inflações e juros de 30%;
Casamos;
Vieram os filhos, a nossa maior façanha e motivação;
Afinamos o ouvido para a música com o génio de Beethoven;
Valsamos com o Danúbio de Strauss;
Silenciamos com os violinos de Vivaldi;
Escalamos às nuvens com a elegância e delicadeza de Mozart;
Ironizamos com Archie Bunker;
Rimos com Allô Allô;
Ligamos o rádio para ouvir o Sala e a Olga;
Esperávamos ansiosos pelo Festival da Canção;
Anos 80
Invadimos a Europa por terra e ar e depois o mundo;
Tememos a Sida;
Explodimos com o calcanhar de Madjer;
Pulamos e saltamos exaustos de discoteca em discoteca;
Corremos atrás do Ouro Olímpico de Carlos Lopes, de Rosa Mota, Mamede e Castros;
Despedimos as máquinas de escrever;
Resistimos aos primeiros computadores;
Falávamos da chegada da Internet;
Invejamos os Yuppies;
Ovacionamos a queda do muro de Berlim;
Aliviamos com o fim da Guerra Fria;
Não compreendemos a reação da China em Tiananmen;
Entramos na velocidade da União Europeia;
Alegramos com a entrada de Portugal na UE;
Jejuamos dos bifes das Vacas Loucas;
Tememos pela vida de João Paulo II no atentado;
Não assassinaríamos John Lennon;
Aderimos ao Concerto Live Aid;
Inquietamos com o desastre Chernobyl;
Desejamos que terminasse a Guerra Irão/Iraque;
Muito falamos sobre a Guerra do Afeganistão/URSS;
Opinamos com a Invasão das Malvinas;
Imitamos os ABBA;
Anos 90
Não colapsamos com a URSS;
Experimentamos os primeiros clicks em www;
Compramos PC´s;
Reunificamos as Alemanhas;
Duvidamos do Fim do Apartheid;
Demos vivas ao Presidente Mandela;
Hesitamos em apoiar a Guerra do Golfo;
Demos o último adeus a Freddie Mercury;
Entristecemos com a fatalidade da Princesa Diana;
Anedotamos com Bill Clinton e Monica Lewinsky;
Retiramos do último território ultramarino: Macau;
Orgulhamos com o Nobel a Saramago;
Prosperamos a par do mundo;
Apoiamos as democracias nas ex-nações soviéticos e todos as outras;
Tememos o Bug na mudança das datas 1999/2000;
Clonamos a Ovelha Dolly;
Envergonhamos ao usar o Telemóvel na rua;
Víamos as Spice Girls;
Anos 00
Viramos o século XX;
Saudamos o XXI;
Trocamos o velho Escudo$ pelo Euro€;
Contentamos com o Euro Grupo;
Quisemos segurar, atónitos e horrorizados as Twin Towers;
Ligamos as Tv’s para Timor (Massacre Stª Cruz);
Descremos da Guerra do Iraque;
Condoemos com o Tsunami de Sumatra;
‘Quase’ ganhamos o Euro 2004;
Conectamos com o mundo através do FaceBook/Twitter...
Estupidificamos com o facebook/twitter;
Algoritamos com as redes sociais;
Ficamos mais atentos às mudanças climáticas com o Furacão Katrina;
Massificamos com a Internet;
Viciamos no Smartphone;
Enternecemos com o desaparecimento de João Paulo II;
Amarguramos com o Crash de ‘08;
Despediu-se Michael Jackson;
Confinamos e teletrabalhámos na Gripe das Aves;
Alegramos com a chegada de Barack Obama;
Fomo-nos despedindo, com dor, da geração anterior;
Hipnotizamos com a chegada dos Netos, esses Príncipes Perfeitos;
Anos '10
Acompanhamos a captura de Bin Laden;
Barafustamos com a Troika;
Maldizemos o governo;
Apertamos o cinto com as restrições;
Acenamos pela última vez a Mandela;
Espreitamos as Reformas;
Discutimos sobre os migrantes no mediterrâneo;
Discordamos do Brexit;
Foi-se Fidel Castro;
Surpreendemos com a eleição de Trump;
Incendiamos com Pedrógão;
Festejamos a conquista do Europeu de Futebol;
Anos ‘20
Caiu-nos em cima o CoronaVírus e a pandemia;
Silenciamos com a paragem das rodas dentadas da máquina do mundo;
Unimo-nos a ele (mundo) na preocupação;
Seguimos enclausurados a evolução;
Congelamos os abraços;
Recorremos à internet, quase, para tudo;
Contentamos com os esforços globais para as vacinas;
Mascarámo-nos com esse objeto estranho e difícil;
Aprendemos novos modos de viver;
Respiramos de alívio com Biden;
Perseveramos com 'Perseverança' a aterrar em Marte;
Acreditamos no amanhã;
E sempre:
Zelamos pelas amizades
Enfeitamos os laços sociais
Cultivamos interações familiares
Que virá a seguir?
Pois que venha. O que vier será bem-vindo.
Avivo e reformulo diariamente a ambição em alta, mantendo o foco no amanhã.