sábado, 15 de junho de 2013

'O Amor nos Tempos de Cólera', de Gabriel García Márquez

É este o primeiro contato com GGM enquanto leitor. E era inevitável. Apenas razões de oportunidade explicam o atraso. Acompanho de há muito e com interesse seu percurso literário, mormente a partir do Prémio Nobel que lhe foi atribuído. Conheço razoavelmente bem o alcance e notoriedade dos seus livros a nível mundial e tenho por ele, à partida, um enorme respeito intelectual comparável aos melhores. Parto pois rumo ao desconhecido mas entusiasmado. Conto com um timoneiro experimentado e capaz de me aportar a ideias novas, nobres e humanamente ricas.
Viajemos então.

O que a seguir direi é no mínimo polémico, talvez até nem verdadeiro e careceria de maior investigação mas, apesar disso, ocorre-me dizer que os escritores da América Latina ou de países congéneres estarão tão envolvidos na realidade da vida social dos seus concidadãos que não têm tempo para a ficção pura ou abstrata, antes colocam o seu talento (as suas melhores armas) ao serviço da tentativa da melhoria da qualidade de vida dos seus irmãos de infortúnio.
Stieg Larsson (sueco) ou Haruki Maruki (japonês) estão mais livres e soltos para poderem voar sem rede.

Temerário é um bom termo para caraterizar aquele que ousa não direi criticar mas apenas comentar este livro de GGM.
E hoje vou sê-lo.
À medida que vamos assimilando o espírito da proposta e vamos percecionando a dimensão, a grandeza e a profundidade dos temas em apreço - o Amor e a Velhice (e ambos em simultâneo) -, vamo-nos apercebendo que o livro está recheado de pensamentos pioneiros e lapidares, temas sulcados e confirmados no tempo, e que resistirão à vida do homem por muitos séculos ainda, incutindo no leitor grande admiração para quem é capaz de as produzir.

Estamos em presença de alguém que nos propõe um Tratado sobre o Amor, seguramente e um Ensaio sobre a Velhice.

Ficção a ler de um só fôlego como parece ter acontecido com a sua criação, tão densa, intensa e síncrona é a sua sequência narrativa.

GGM vai revestindo o cabide desta história, step by step, com roupagens novas, umas garridas outras nem tanto, mas resultando no final um manequim admirável.

Como um equilibrista de circo, GGM inicia esta viagem sozinho, apenas apoiado na sua inteligência e convicções. Sabe quando a começa, porquê, e sabe muito bem onde vai chegar. Demora mais de meio século (à volta de 65 anos), abrangendo o último quartel do século XIX e o primeiro do XX para a realizar e pelo caminho vai-nos relatando não só a vida daquela região do Globo na sua fase pós-colonial - América Central e Sul - como ficcionando aquilo que pode ser a vida do ser humano através dos dois personagens centrais: Florentino Ariza e Fermina Daza.

Faz a viagem direta, como se caminhasse numa autoestrada, sem necessidade de incursões laterais complementares.

Forma de escrita tradicional, nada original, mas nem por isso menos objetiva ou contagiante. Chega ao leitor com toda a simplicidade mas com autoridade e mestria como que falando com ele, face to face. É um diálogo a dois. E mais que isso: põe-no a pensar; dá-lhe tempo e espaço para que se interrogue sobre o que está sendo dito. Escreve para ele, para o leitor e para o mundo. É impossível ficar indiferente aos temas tratados, tão profundos são. E também porque, num ou n'outro grau, a todos atinge.

Não resistirei ao 100 Anos de Solidão.

P.S.
A pedofilia presente na narrativa é apresentada com tanta naturalidade, simplicidade, ingenuidade, candura e de tal forma destituída de malícia, que a torna quase invisível aos crivos da crítica, resultando na sua promoção.
Um bom escritor é também isso: arte de bem embrulhar.
O comité do Nobel ao atribuir-lhe o prémio está, não direi a validar, mas a contribuir enormemente para a sua divulgação pelo mundo. 

'O Amor nos Tempos de Cólera', de Gabriel García Márquez

"Desde que ouviu falar pela primeira vez a história do tesouro na casa de passe, Florentino Ariza informara-se de tudo quanto lhe foi possível sobre os hábitos dos galeões. Soube que o San José não estava sozinho nos fundos de coral. Com efeito era nau capitânia da Frota de Terra Firme, e chegou aqui depois da Maio de 1708, procedente da lendária feira de Portobello, no Panamá, onde carregara parte da sua fortuna: trezentos baús com prata do Peru e Vera Cruz e cento e dez baús de pérolas, reunidas e contadas na ilha de Contador. Durante o longo mês que aqui permaneceu, cujos dias e noites foram de festas populares, carregaram o resto do tesouro destinado a tirar da pobreza o reino de Espanha: cento e dezasseis baús de esmeraldas de Muzo e Somondoco, e trinta milhões de moedas de ouro".