Era eu pequeno, ainda imberbe (… era o rapaz da camisola verde, negra madeixa ao vento, boina maruja ao lado…/Pedro Homem de Melo), com menos de 10 anos, o irmão do meio de 5, e meus pais granjeavam uma lavoura (expressão da época), no lugar da Atães, Fermil, Celorico de Basto. Lavoura, na minha pequena e inocente perspetiva, enorme: campos aqui, ali, acolá e mais além (campo do pitelo, campo do fragão, campo do tapadinho, campo da torre, campo do feijão, campo da fonte, campo do sobreiro, campo da estrada, leira do meio, quintal de cima, quintal de baixo e bitacos (campos pequenos/expressão local), muitos bitacos: campos a mais, pensava eu...
Animais domésticos de todo o tipo e por todo o lado, eram também a nossa companhia do dia-a-dia. Havia para com eles um grande cuidado e proximidade; faziam parte afinal do sustento da família, quer na vertente alimentar quer na comercial.
Animais domésticos de todo o tipo e por todo o lado, eram também a nossa companhia do dia-a-dia. Havia para com eles um grande cuidado e proximidade; faziam parte afinal do sustento da família, quer na vertente alimentar quer na comercial.
Havia pois que tratá-los bem.
De entre esses animais, meus pais tinham também para a ajuda do trabalho do campo (não havia ainda tratores) uma parelha de vacas: a Linda e a Amarela. A Linda sucedera a uma outra, a Vermelha, animal temperamental, inacessível; brava mesmo. Quando foi comprada, a Linda era uma peça animal bonita: não era grande mas em contrapartida era nova, viçosa, gorda e cheia de força. Inclusive vinha prenha.
Era eu também uns dos seus ‘guardadores’, alternando com meus outros irmãos, que as levávamos para as pastagens nos montes. Conhecia já bastante bem o comportamento animal nomeadamente quando em manada.
De entre esses animais, meus pais tinham também para a ajuda do trabalho do campo (não havia ainda tratores) uma parelha de vacas: a Linda e a Amarela. A Linda sucedera a uma outra, a Vermelha, animal temperamental, inacessível; brava mesmo. Quando foi comprada, a Linda era uma peça animal bonita: não era grande mas em contrapartida era nova, viçosa, gorda e cheia de força. Inclusive vinha prenha.
Era eu também uns dos seus ‘guardadores’, alternando com meus outros irmãos, que as levávamos para as pastagens nos montes. Conhecia já bastante bem o comportamento animal nomeadamente quando em manada.
Quando saíamos com elas para as pastagens juntavam-se também os animais dos vizinhos e todos, gado e guardadores, lá íamos. Os guardadores (nós os miúdos) iam mais entusiasmados com a perspetiva das brincadeiras e não tanto para cuidar dos animais, diga-se com toda a verdade. Quantas vezes as perderam!
O meu vizinho, o Sr. Avelino do Pomar, - pai de muitos filhos (12) meus amigos de proximidade, de infância e das brincadeiras: o Quim, o Gervásio, o Manel, a Teresa … - tinha igualmente uma parelha que pastava com as minhas. Uma delas, a Narcisa, era a chefe da manada. Prazenteira mas ostensiva, confiante e distante - comportamento próprio de ‘chefe’ -, seguia atrás das outras com a cauda indolentemente repousando no dorso e de cabeça erguida, sempre perscrutando e varrendo toda a zona, conduzia com mestria todas as outras, que seguiam alinhadas como carneiros à sua frente.
O meu vizinho, o Sr. Avelino do Pomar, - pai de muitos filhos (12) meus amigos de proximidade, de infância e das brincadeiras: o Quim, o Gervásio, o Manel, a Teresa … - tinha igualmente uma parelha que pastava com as minhas. Uma delas, a Narcisa, era a chefe da manada. Prazenteira mas ostensiva, confiante e distante - comportamento próprio de ‘chefe’ -, seguia atrás das outras com a cauda indolentemente repousando no dorso e de cabeça erguida, sempre perscrutando e varrendo toda a zona, conduzia com mestria todas as outras, que seguiam alinhadas como carneiros à sua frente.
Como eu detestava aquele animal! Porque haveria de ser a Narcisa do meu vizinho a ‘mandar’ na manada, principalmente, também, nas minhas. Convivia mal com isso. Escondia este meu azedume e aspirava um dia a ver a situação alterada a meu favor, diga-se, ver uma das minhas naquele papel de mandona.
Quando a Linda chegou as minhas esperanças aumentaram. A minha sorte poderia virar. Via nela força e personalidade capaz para isso.
Fiquei angustiado mas à espera do confronto entre ambas que sabia que tinha de acontecer. No reino animal sempre foi assim: não pode haver dois galos no mesmo capoeiro.
Logo numa das primeiras vezes que saíram juntas a presença da Linda foi logo notada por todas mas principalmente pela Narcisa que não mais a perdeu de vista.
Obviamente que todos os rapazolas ambicionavam ver o embate (tipo chega de bois de Trás-os-Montes) e acompanhávamos minuciosamente todos os passos e observações entre as duas. Ora de cabeça baixa ora ‘distraidamente’ cheirando o ar, cada uma avaliava constantemente as forças da outra a uma distância ‘aconselhável’.
O estudo mútuo foi evoluindo lentamente até que uns dias depois, a dada altura, lá no meio de um descampado e por iniciativa da Narcisa – como lhe competia aliás, demonstrando assim também perante as demais, que continuava a ter direito ao trono – deu-se o inevitável e tão aguardado confronto. Como num circo a rapaziada posicionou-se o melhor possível para, nervosamente, assistirem à luta decisiva.
A Narcisa investiu forte e a Linda, apanhada um pouco desprevenida, recuou uns passos. Porém, possante como parecia, aguentou firme, refez forças, reposicionou-se, fincou bem as quatro patas no chão e, cabeça contra cabeça… forçou a Narcisa a recuar. Aparentemente derrotada mas não totalmente convencida, passados uns minutos, a Narcisa, já mais refeita e não querendo acreditar na primeira derrota que lhe fora infligida, voltou teimosamente à carga. Novo embate. A Linda, fortalecida pela primeira vitória, não lhe deu hipótese e obrigando-a a recuar uns bons metros humilhou a Narcisa, demonstrando quem afinal era mais forte.
Definitivamente derrotada, a Narcisa dispersou e não mais reivindicou seu anterior estatuto. Tinha sido eleita a nova chefe numa luta leal e com todas as outras a assistir de perto, na plateia.
O meu regozijo foi, como se pode imaginar, incontido e desmedido. Finalmente a minha Linda era a chefe! Meu orgulho aumentou indescritivelmente. Durante uns bons meses, não lembro bem se anos, era a minha Linda a Chefe, a que conduzia o resto da manada, honrada e venerada.
Entretanto a Linda teve a sua cria que ao amamenta-la emagreceu e começou a perder algumas forças. Por outro lado teve que alinhar nos trabalhos normais do campo, emparelhando com a Amarela. Perdeu mais forças ainda.
Embora acompanhando e apreciando a evolução definhante da minha Linda, admitia que o seu reinado não estaria ameaçado.
Puro engano. Não dominava, como julgava, o comportamento animal. Melhor que eu, a Narcisa, acompanhava a evolução da sua rival. Sabia, melhor que eu, que ela estava a enfraquecer e a perder forças. O tempo e o estado de Linda estavam a correr a seu favor e seria uma questão de tempo e oportunidade. A Narcisa tinha perdido uma vitória mas, no seu entender, a guerra não estava definida em definitivo.
E um belo (?) dia, estando a Linda distraidamente a beber no ribeiro habitual, foi sorrateiramente surpreendida pela Narcisa que traiçoeiramente, forte e tempestiva investiu contra ela, levando de vencida. A Linda quase não ofereceu resistência. E a Narcisa recuperou mais uma vez o seu trono.
A minha tristeza foi grande mas não tão grande como grande tinha sido o meu contentamento quando a Linda se tornou e foi Rainha.
‘Mais vale ser-se rainha por um dia que serva toda a vida’, diz o provérbio.
Nota:
Ainda hoje aprecio estas cenas da vida campesina. Recentemente assisti, com gosto, a várias ‘chegas de bois’ em Vila do Conde, inseridas nos festejos locais.